Pela separação entre Igrejas e Estado: Pelo fim das opressões em nome da fé
- Revolução Socialista
- há 4 dias
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Por Maximiliano Michelini e Vanessa Calmon, militantes da regional Paraná da Revolução Socialista.

O discurso “Deus, pátria e família”, amplamente utilizado pela extrema direita para mobilizar pessoas em nome do que é considerado moralmente “bom”, possui raízes históricas no Brasil.
No início da colonização em 1500, os missionários da Igreja Católica, sob o pretexto de promover “o bem, o amor e a salvação”, implementaram uma catequização que servia aos interesses coloniais. O catolicismo foi imposto como religião oficial do Império, sendo a única autorizada a realizar cultos públicos ou domésticos.
A aliança entre a coroa portuguesa e o Vaticano disfarçou os objetivos imperialistas de missão espiritual, voltada à salvação de almas e à difusão da fé cristã.
PANORAMA RELIGIOSO
Segundo o Censo mais recente de 2022, os católicos com 56% continuam liderando a principal proporção de religiões no Brasil, seguido por os evangélicos com 27%, os sem religião 9% e outras religiões 4%. Nesse sentido o espiritismo representa 2% e a umbanda/candomblé 1% da população brasileira
Nesta conjuntura, o catolicismo ainda majoritário está em claro declínio frente aos evangélicos que cresceram e alcançaram quase 27% da população. Pelo contrário, a umbanda e o candomblé mais que triplicaram sua representatividade frente ao espiritismo que registra uma leve queda. A população sem religião também aumentou, representando quase um 10% da população brasileira.
ISENÇÃO FISCAL
No Brasil, igrejas e demais templos de qualquer culto não recebem repasses diretos do Estado, mas usufruem de ampla imunidade tributária prevista na Constituição Federal (art. 150, inciso VI, alínea “b”). Na prática, isso significa que estão isentas de impostos sobre patrimônio, renda e serviços relacionados à sua atividade religiosa — uma renúncia fiscal que pode chegar a R$ 1 bilhão por ano. Esse cenário reacende o debate sobre o equilíbrio entre a liberdade de culto e a necessidade de arrecadação para financiar políticas públicas, especialmente em um país com demandas sociais urgentes.
Para se ter uma ideia:
Igrejas não pagam IPTU sobre o imóvel onde realizam cultos;
Não pagam impostos sobre doações recebidas;
Estão isentas de tributos sobre salários de funcionários administrativos, desde que ligados às atividades essenciais da instituição.

Entre os nomes mais influentes destaca-se Silas Malafaia. Pastor da Assembleia de Deus Vitória em Cristo desde 2010 e fundador da Associação Vitória em Cristo (AVEC), ambas instituições com imunidade tributária. Malafaia lidera uma igreja cuja estrutura se assemelha a uma casa de espetáculos, com capacidade para cerca de 6.000 (seis mil) fiéis em cadeiras estofadas, distribuídas em um amplo salão e mezanino. O espaço conta com som e iluminação, telões de alta definição e sistema de filmagem profissional para transmissões ao vivo e também para o programa televisivo “Vitória em Cristo”, no ar desde 1982.
Em 2013, a revista Forbes o posicionou como o terceiro pastor mais rico do Brasil, com uma fortuna estimada em 150 milhões de dólares. Além de sua atuação religiosa, Malafaia exerce forte influência política, sendo conselheiro próximo de Jair Bolsonaro e tendo financiado manifestações bolsonaristas com recursos da AVEC.
Em tempos de arcabouço fiscal, vale perguntar: até que ponto o Estado deve abrir mão de bilhões em arrecadação para manter privilégios fiscais a organizações religiosas? É possível responder a essa pergunta destacando os serviços que muitas dessas instituições prestam nas comunidades onde estão inseridas. Sua presença territorial lhes permite atuar diretamente em diversas problemáticas sociais, como o consumo problemático de drogas lícitas e ilícitas, questões relacionadas ao agravamento da saúde mental, o combate à fome, entre outras demandas que afetam a população local.
Mesmo assim, é preciso considerar que o envolvimento de alguns grupos religiosos com organizações ligadas à lavagem de dinheiro proveniente do tráfico de drogas — em formatos clássicos de facções como o PCC e o Comando Vermelho — transforma o financiamento público indireto em um paradoxo.
De um lado, essas entidades recebem isenções para atuar no enfrentamento de problemas relacionados às drogas; de outro, acabam servindo, em certos casos, como fachada para a manutenção e expansão da influência do crime organizado nos territórios onde atuam.
OPRESSÕES EM NOME DA FÉ
Embora o Estado brasileiro se declare laico, a predominância da ideologia religiosa faz com que seus valores sejam frequentemente tratados como universais. Essa influência se manifesta em diversas esferas, desde a definição dos feriados nacionais — dos nove oficiais, mais da metade são cristãos — até formulação de leis que impactam diretamente os nossos direitos civis e consequentemente a nossa vida cotidiana. A implicância da intromissão das diferentes igrejas se manifesta de diversas formas, como veremos a seguir.
CASAMENTO
“Quando os colonizadores chegaram para nos “salvar”, diziam que a não monogamia indígena era “coisa de animal irracional” e que o único verdadeiro casamento era o cristão monogâmico.” (Geni Núñez)
A confusão entre pecado e crime marcou a legislação brasileira, que manteve o adultério como crime no Código Penal até 2005. Essa criminalização pressupunha que o direito ao próprio corpo deveria ser cedido ao cônjuge, transformando a autonomia sexual em uma ofensa. A dificuldade em reconhecer que uma relação pode terminar antes do famoso “até que a morte os separe” é a raiz de violências misóginas, como o feminicídio, (link texto feminicídio) que expressa de forma extrema a negação da autonomia feminina sobre sua vida e seus vínculos afetivos.
A imposição jurídica da monogamia está associada à regulação da propriedade, previdência e pensão, restringindo esses direitos aos moldes da chamada “família tradicional”. Além disso, essa estrutura se mantém por razões econômicas, já que o trabalho doméstico e de cuidado realizado majoritariamente por mulheres — especialmente as não brancas — é naturalizado como expressão de afeto, não sendo remunerado. Essa exploração invisibilizada é um dos pilares que sustentam a vida sob o capitalismo.
DIREITO AO ABORTO LEGAL, SEGURO E GRATUITO
No plano local, em Curitiba, a vereadora Tathiana Guzella (União Brasil) apresentou um projeto que propõe reconhecer a cidade como “Capital Pró-Vida”. Em linhas gerais, a proposta prevê o incentivo a políticas públicas, campanhas educativas e ações que promovam alternativas à interrupção da gestação, como a adoção. No entanto, esse tipo de iniciativa não faz mais do que revitimizar mulheres e pessoas com capacidade de gestar, ignorando situações dramáticas — como o caso em que uma juíza induziu uma menina de 11 anos, vítima de estupro, a desistir do seu direito ao aborto legal. Nesse mesmo sentido, a própria autora do projeto afirmou que “é uma campanha de conscientização para que a mulher que deseja abortar talvez possa esperar um pouquinho mais e colocar essa criança para adoção”, reforçando uma lógica de coerção em vez de garantia de direitos.
DISSIDÊNCIAS SEXUAIS LGBTQIAPN+
Igrejas que se sustentam com dinheiro público e promovem práticas como a “cura gay”, defendida por figuras como Silas Malafaia, são agentes diretos da violência contra a comunidade LGBT. Essas ações não apenas atacam vidas dissidentes, mas também reforçam o heteropatriarcado (um sistema social que privilegia homens cisgêneros heterossexuais, subordinando mulheres e pessoas LGBTQIA+) e sustentam um capitalismo decadente. Ao se colocarem como neutras ou alinhadas à direita, essas instituições religiosas atuam como ferramentas coloniais de alienação, sufocando a consciência de classe e promovendo a falsa conciliação entre opressores e oprimidos. Como aponta Paulo Freire, não há neutralidade: ao não se comprometerem com a libertação dos povos, contribuem para a perpetuação da ideologia dominante e das desigualdades sociais.
SAÚDE
Inclusive, essa “missão de fé” que justifica a isenção de impostos às igrejas mantém uma forte ligação com as chamadas comunidades terapêuticas, que recebem vultosos repasses do governo federal e estadual. Esse vínculo, longe de resolver a questão, pode agravar ainda mais o problema, reforçando dinâmicas de dependência e ampliando o poder dessas instituições nos territórios.
RACISMO RELIGIOSO
A imposição religiosa desde o período colonial, marcou os primeiros traços do racismo religioso, com missionários classificando as espiritualidades indígenas como falsas ou demoníacas. Essa lógica de intolerância persiste até hoje, sustentando ações violentas contra casas de reza indígenas e terreiros de matriz afro-brasileira, em nome de uma monocultura da fé que não admite a convivência com a diversidade.
MÍDIAS E IGREJAS
Algumas igrejas evangélicas no Brasil controlam grandes canais de comunicação, ampliando significativamente sua influência religiosa e política. Edir Macedo, fundador da Igreja Universal do Reino de Deus, é o pastor mais rico do país, com patrimônio estimado em 950 milhões de dólares, segundo a revista Forbes. Seu principal investimento foi a aquisição da Rede Record, na década de 1980.
Outro exemplo é Romildo Ribeiro Soares, conhecido como R. R. Soares, fundador da Igreja Internacional da Graça de Deus, que se destaca pela atuação como cantor, compositor e televangelista frente ao programa “Show da Fé” transmitido pela Rede Bandeirantes (Band) e RedeTV!
CONCLUSÃO
Não queremos, com esta nota, afirmar que todas as pessoas que fazem parte ou professam diferentes cultos e religiões concordam com essas práticas. Trata-se, sobretudo, de acordos entre as cúpulas de certos credos e os governos para a manutenção da ordem capitalista. No entanto, é fundamental sermos claros e transparentes sobre os impactos que essas alianças trazem. Para sermos claros e incisivos, é preciso nomear os responsáveis diretos nas articulações políticas e institucionais que afetam e limitam diretamente o exercício dos nossos direitos: a bancada evangélica e a do agronegócio, em conluio com outros setores da Câmara — incluindo o presidente Hugo Motta (Republicanos-PB) — e com a conivência do próprio governo Lula 3 em vistas as eleições presidenciais do próximo ano.
Sobram razões para nos posicionarmos contra o financiamento — direto ou indireto — dos diferentes credos religiosos. Essas instituições, ao invés de se limitarem à esfera da fé, têm interferido de forma crescente em nossa vida política e pessoal, influenciando decisões que deveriam ser pautadas por princípios democráticos e laicos. Não é aceitável que recursos públicos sustentem estruturas que, em muitos casos, atuam contra direitos fundamentais já conquistados, como os direitos das mulheres, da população LGBTQIAPN+ e das minorias religiosas.
Diante desse cenário, torna-se ainda mais urgente:
Nutrir e fortalecer uma política de afetos que mantenha viva o esperançar e o horizonte de total superação das opressões que sustentaram até aqui o capitalismo.
Mobilizar pela efetiva e definitiva separação entre as igrejas e o Estado burguês brasileiro, condição indispensável para garantir a laicidade do Estado.
Seguirmos organizades, rompendo com o reformismo que descarta a possibilidade de uma revolução socialista.
FONTES:
Núñez, Geni (2023) Descolonizando afetos: experimentações sobre outras formas de amar.
Negrão, L. N.. (2008). Pluralismo e multiplicidades religiosas no Brasil contemporâneo. Sociedade E Estado, 23(2), 261–279. https://doi.org/10.1590/S0102-69922008000200004
ICL - Império Malafaia. https://iclnoticias.com.br/imperio-malafaia/
Forbes – 5 pastores mais ricos do Brasil. https://www.forbes.com/sites/andersonantunes/2013/01/17/the-richest-pastors-in-brazil/
Importante falar sobre esse tema. A crítica por um estado laico é muito pertinente e ficou muito bem conectado os aspectos culturais, econômicos e políticos envolvidos.