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Os riscos da institucionalidade burguesa: ou como sabotar o projeto da classe trabalhadora?

Por Modesto Neto

No labirinto do capitalismo, não existe saída pra classe

A classe trabalhadora no mundo foi separada da posse dos meios de produção desde que o capitalismo nascente da Era Moderna passou ao controle da produção e reprodução da vida social, concentrando as tecnologias e ferramentas, pagando salários por força de trabalho, utilizando o Estado como braço auxiliar da burguesia para blindar seus interesses. Foi extraindo o máximo de lucro possível, explorando de forma violenta e predatória o homem e a natureza que os impérios e fortunas se formaram ao longo da história humana.

Nesta semana, o milionário australiano Tim Gurner, CEO do Gurner Group, defendeu o aumento do desemprego para disciplinar a classe trabalhadora e aumentar a produtividade nos distintos ramos da economia. A declaração foi dada na cúpula imobiliária da Australian Financial Review. [1] O desemprego estrutural é uma dura realidade, atualmente mais de 208 milhões de desempregados no mundo registra a Organização Internacional do Trabalho (OIT) e essa é uma condição que permite aos capitalistas explorarem com mais ferocidade o exercito de reserva [2], especialmente através de plataformas digitais como Uber e Ifood.

Apesar de todo trabalho propagandístico promovido pelos escribas neoliberais para normalizar a escravidão moderna e louvar as virtudes de bilionários (que supostamente geram empregos em vez de exploração), os que vivem do trabalho e experimentam a truculência da exploração capitalista podem não compreender com precisão teórica sua realidade, mas sentem no cotidiano da vida prática que seus trabalhos exaustivos furtam seu tempo de vida em detrimento de lhes garantir dignidade. É por esse motivo que O discurso sobre a origem da desigualdade entre os homens de 1755, escrito por Jean-Jacques Rousseau continua atual.

"Os ricos logo que conheceram o prazer de dominar, imediatamente desprezaram todos os outros, e, servindo-se dos seus antigos escravos para arranjar outros novos, não pensaram senão em subjugar a todos ao seu redor. Os ricos, assim, assemelham-se aos lobos famintos que, tendo uma vez provado carne humana, recusam qualquer outro alimento e não querem senão devorar homens". [3]

A experiência histórica tem demonstrado que não existem alternativas para garantir uma vida digna as imensas maiorias sociais sem enfrentar os privilégios da burguesia e colocar os meios de produção e o trabalho humano ao serviço da classe trabalhadora e sua emancipação. Esse objetivo audacioso de colocar um fim ao regime da exploração do homem pelo homem não é uma tarefa que possa se realizar por obra de governos, parlamentos ou tribunais. Somente a organização dos de baixo é o antidoto para mudar as regras do jogo.

No labirinto do capitalismo, não existe saída para um projeto societário para a classe trabalhadora. Os projetos que prometem saídas sem romper com o sistema capitalista só semeiam ilusões e frustrações.

A luta dos de baixo: a experiência da classe no Brasil na construção de seus organismos de luta

Não é de hoje que os de baixo lutam. No Brasil colonial, indígenas e negros lutaram pela liberdade, ergueram quilombos, assassinaram seus senhores, fugiram dos grilhões da escravidão. No Brasil contemporâneo poderosas greves marcaram os anos 1980, lutou-se contra a Ditadura Militar e a classe construiu seus partidos, como o Partido dos Trabalhadores nesta década: um partido-movimento com relação orgânica com os movimentos sociais e os explorados a serviço de construir uma alternativa de poder.

O PT fundacional da década de 1980 se adaptou durante os anos 1990 as regras do jogo institucional burguês e nos anos 2000 passou a fazer das eleições seu principal espaço de atuação. Paulatinamente o PT foi transformando-se de um partido-movimento da esquerda brasileira em um partido de centro-esquerda completamente adaptado a ordem burguesa, incapaz de romper com a lógica do mercado. No limite o PT no poder, cacifou-se como um administrador do capitalismo brasileiro, concedendo pequena parcela de direitos e benefícios sociais aos setores mais vulneráveis.

Os governos Temer e Bolsonaro produziram um desmonte do Estado brasileiro, promoveram a Reforma Trabalhista e a Reforma Previdenciária, além do Teto de Gatos. A situação dos de baixo não encontraram eco no Governo Lula 3.0, pelo contrário: o Teto de Gastos se transformou no Arcabouço Fiscal, uma política da economia política atendendo os imperativos neoliberais. Grande parcela da classe trabalhadora votou em Lula no segundo turno das eleições de 2022 para derrotar Bolsonaro, mas aguardavam por mais do que tem sido entregue até o momento.

No contexto da Frente Ampla diante do Governo, parte majoritária do PSOL está vinculada ao governismo, tendo o deputado Henrique Vieira como vice-líder do Governo na Câmara dos Deputados. É fato que o PSOL tem uma bancada combativa, referência de luta e que enfrenta a luta parlamentar conectado aos interesses da classe. Contudo, é importante indagar: isso basta?

O PSOL se pretende se postular como alternativa a classe trabalhadora não pode se render aos vícios da institucionalidade e passar a operar como um partido da ordem. O PSOL é parte da reorganização da esquerda anticapitalista no Brasil e vive uma encruzilhada: se converterá em um partido da institucionalidade burguesa com seu centro de atuação nas eleições ou manterá a independência de classe como eixo de sua atuação?

Os vícios da institucionalidade: independência de classe em risco

Os desafios para a organização da classe trabalhadora no Brasil e no mundo são crescentes. Além da fragmentação obreira, temos uma forte diminuição de trabalhadores sindicalizados. Segundo O Globo, com base nos dados do IBGE é a primeira vez na história do Brasil (desde que se iniciou a PNAD Continua) que o país registra menos de 10 milhões de trabalhadores sindicalizados. [4]

O crescimento da informalidade e da precarização extrema no mundo do trabalho também corrobora para uma diminuição do universo de trabalhadores organizados em sindicatos. É certo que estes organismos de luta são importantes, organizam os trabalhadores para as lutas, mas sozinhos, não são capazes de orientar um projeto maior da emancipação dos de baixo, congregando as maiorias sociais que estão fora desses organismos, daí a importância dos partidos políticos forjados pela classe.

No Brasil, o PT que foi um instrumento político importante para impulsionar a participação política nos parlamentos de setores historicamente marginalizados, acabou se perdendo como projeto com independência de classe e por vezes converteu-se em ferramenta para frear lutas, domesticar a classe e resguardar os interesses da burguesia em detrimento dos que vivem do trabalho.

Trótsky em Lições de Outubro [5]afirma que o partido político da classe trabalhadora que não se ocupa de acertar as contas com sua tarefa histórica, acaba se convertendo em instrumento de classe antagônica, neste caso, da burguesia. Impossível ser mais atual. O Governo Lula 3.0 e a Frente Ampla são demonstrações desse fenômeno de metamorfose política que Leon prevê e caracteriza.

Os vícios que a institucionalidade burguesa provoca são muitos para as organizações de esquerda, mas nenhuma é mais letal que a conversão a um organismo da ordem, quando se abandona um projeto de ruptura/superação da ordem capitalista, adapta-se a institucionalidade burguesa, fatalmente adapta-se a uma moralidade política também burguesa, com seus trejeitos e às vezes até seu modo operandi.

Os partidos políticos da esquerda se adaptam em diferentes níveis a essa institucionalidade burguesa, são mastigados pelo Estado capitalista que tem como principio corromper até o mais revolucionário dos homens, das experiências em participação nos governos da ordem e no parlamento. Não se pode perder de vista que a classe trabalhadora joga em um terreno político (nos limites da institucionalidade burguesa) onde as regras do jogo são escritas e reescritas ao serviço de uma classe dominante.

Os privilégios que abundam nos gabinetes da classe política, nas instâncias de poder do Estado, todas circunscritas a institucionalidade burguesa, corrompe, produz vícios, reproduz opressões, aliena-se e aparta parlamentares e figuras públicas no campo dos trabalhadores da realidade concreta da classe.

A esquerda anticapitalista e revolucionária deve continuar ocupando todos os espaços possíveis no território da representação política, impulsionar suas ideias, fazer de seus parlamentares tribunos dos interesses das maiorias sociais, mas sem perder de vistas que se não vacina-se contra os riscos da institucionalidade burguesa, acaba-se por reproduzi-la. Para romper com a ordem capitalista, também é necessário romper com os métodos da institucionalidade burguesa, sua moralidade e as maneiras de fazer os enfrentamentos políticos.

Uma representação política revolucionária da classe trabalhadora não se vende na farmácia e não possui uma receita-pronta, as distintas experiências da classe são acúmulos para construir essa representação política, embora tenhamos muito a apreender. O certo é eu adaptar-se a institucionalidade burguesa é o primeiro passo para sabotar um projeto de poder real da classe trabalhadora.


Notas

[1] Por ESTADÃO - Redação. CEO diz que desemprego deve subir para que empresas tenham mais poder sobre funcionário. Disponível em: https://www.estadao.com.br/economia/ceo-desemprego-subir-empresas-tenham-poder-funcionario-nprei/. Acessado em 15 de setembro de 2023.

[2] Por Poder 360. Desemprego global atingirá 208 milhões em 2023, diz pesquisa. Disponível em: https://www.poder360.com.br/economia/desemprego-global-atingira-208-milhoes-em-2023-diz-pesquisa/. Acessado em 15 de setembro de 2023.

[3] – Por Jean-Jacques Rousseau. Discurso sobre a origem e fundamentos da Desigualdade entre os homens. Publicações Europa-América: Mira-Sintra, 1976.

[4] Por Carolina Nalin - Jornal O Globo. Número de trabalhadores sindicalizados no país cai ao menor nível em uma década. Disponível em: https://oglobo.globo.com/economia/noticia/2023/09/15/numero-de-trabalhadores-sindicalizados-no-pais-cai-ao-menor-nivel-em-uma-decada.ghtml. Acessado em 17 de setembro de 2023.

[5] Por Leon Trotsky. Lições de Outubro. Edições Antídoto, Lisboa, 1979.

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