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Do parlamento ao superparlamento

Por Alessandro Fernandes — Direção Nacional da Revolução Socialista/PSOL

 

A mais recente derrota do governo Lula no Congresso foi a suspensão dos Decretos presidenciais sobre o aumento do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) [1]. O Executivo foi obrigado a recuar sob o comando de Hugo Motta (Republicanos-PB), presidente da Câmara dos Deputados, e Davi Alcolumbre (União Brasil-AP), presidente do Senado, que ainda comentou: “Sabemos que é sim uma derrota para o governo, mas foi construída por várias mãos”.

 

Esse recuo reacendeu as análises sobre até onde pode ir o Executivo no atual regime democrático burguês. Gilmar Mendes e Flávio Dino, ministros do STF, comentaram sobre um “Semipresidencialismo” e “Presidencialismo de Congresso”, respectivamente [2]. Ao mesmo tempo, Dino também relatou que o STF constantemente judicializa as crises do Executivo e Legislativo. Ainda houve os que afirmaram que Motta ativou o “modo Eduardo Cunha” [3].

 

A partir da criação do Orçamento Impositivo (Emenda Constitucional nº 86/2015), ocorreu um salto na instabilidade entre os três poderes com o ganho de musculatura financeira e política do Legislativo. Eduardo Cunha, então presidente da Câmara dos Deputados, se comportou como um quase Primeiro-Ministro. Essa emenda modificou materialmente a relação de cada parlamentar com o orçamento, ao obrigar a execução de emendas parlamentares individuais até o limite de 1,2% da Receita Corrente Líquida (RCL) do ano anterior — um orçamento bilionário utilizado pelo conjunto de deputados e senadores. Em 2019, o Orçamento Impositivo foi estendido também aos Legislativos estaduais.

 

O que seria usado para “reduzir o clientelismo político” e “fortalecer a transparência” tornou-se, hoje, uma orgia orçamentária promovida por um parlamento que virou superparlamento. Como chegamos à beira de um presidencialismo às avessas?

 

O superparlamento burguês 

 

O Legislativo avançou onde o Executivo se mostrou débil: um governo derrubado pelo mecanismo legislativo do impeachment, com um objetivo reacionário e que contou com o aval do Judiciário; um governo fantoche, produto de um acordão burguês, já deslegitimado pela população; e outro, de extrema direita, que testou até os limites a desarmonia entre os três poderes para consolidar seu projeto bonapartista — sem sucesso. Tudo isso fortaleceu, por cima, a Câmara dos Deputados e o Senado, mesmo sem a confiança popular, e com destaque para o principal setor político que os dirige: o Centrão burguês.

 

Nesse período, tivemos a mais longeva presidência da Câmara dos Deputados, com Rodrigo Maia (2016–2021). Em 2019, a Lei nº 13.957 deu início a um novo capítulo: as Emendas do Relator (RP9), na prática o Orçamento Secreto. A lei alterou a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) para permitir ao relator-geral da Lei Orçamentária Anual (LOA) inserir emendas após a aprovação inicial, sem identificação de quem as solicitou ou de quem seria beneficiado.

 

Mesmo suspenso parcialmente em 2021 pelo STF, o Orçamento Secreto deixou frutos, como os casos de desvio de verbas públicas para barganhas políticas: municípios que relataram mais radiografias do que habitantes; desvio de recursos para o DNOCS; emendas com chantagens a prefeitos. É evidente que os casos de corrupção não são novidade, mas não há dúvida de que o Orçamento Secreto modificou qualitativamente a situação.

 

Hoje, as Emendas do Relator transformaram-se em Emendas dos Líderes, negociadas diretamente entre os líderes partidários das casas e o governo federal, com despesas discricionárias ou em comissões, sem que os líderes apareçam publicamente como autores. Ou seja, o “pós”-Orçamento Secreto é, na verdade, sua continuação institucionalizada.

 

Em 2022, por exemplo, esse orçamento envolveu cerca de R$ 16,5 bilhões, com grande parte do destino desconhecido. Mas a questão não é apenas financeira, é política. O orçamento tornou-se a principal ferramenta para garantir apoio ao Executivo no Parlamento. Foi assim com Bolsonaro, é assim com Lula. Hoje, talvez não seja mais questão de vida ou morte para o Centrão burguês, seu principal controlador, comandar ministérios.

 

Permanece atual o que Marx e Engels afirmaram em 1848 no Manifesto: “O moderno poder de Estado não é senão um comitê para administrar os negócios comuns da classe burguesa.” Quem desafia essa lógica venal é perseguido, como nas denúncias de nosso camarada e deputado federal Glauber Braga (PSOL) contra Arthur Lira, ex-presidente da Câmara, responsabilizado por uma sanha que ameaça cassar seu mandato, eleito pela nossa classe [4].

 

O parlamento tornou-se superparlamento — não ainda a ponto de redefinir a relação entre as instituições e os poderes do regime democrático burguês, mas desestabilizando a relação entre os três poderes. É importante compreender se essa dinâmica de médio prazo — já em curso há pelo menos uma década — tem a capacidade de modificar por dentro, e de forma gradual, o próprio regime.

 

À primeira vista, as manobras de controle orçamentário explicam o fortalecimento do Legislativo e do Centrão burguês, mas é preciso considerar um projeto político maior. A crise mundial capitalista de 2008 ampliou a pressão das burguesias sobre os diferentes governos para aplicar ajustes contra a classe trabalhadora. No Brasil, o explosivo 2013 abriu uma nova situação política, econômica e social. Nossa burguesia pretende aplicar um conjunto de contrarreformas a fim de garantir sua fatia da mais-valia [5]. Estas contrarreformas ainda não foram totalmente implementadas porque diferentes setores da classe trabalhadora foram às ruas lutar contra os ajustes.

 

É evidente que a correlação de forças entre os poderes se modificou ao longo da situação — ora mais afastada, ora mais próxima. Isso é perceptível nas mudanças de presidência da Câmara, de Rodrigo Maia para Arthur Lira, ou do Senado, entre Rodrigo Pacheco e o retorno de Davi Alcolumbre. Mas a dinâmica geral permanece: uma relação corrupta de chantagens entre o Legislativo e o Executivo. Com essas regras do jogo, quem ganha é o Legislativo dominado pela representação burguesa “puro sangue”.

 

Não por acaso, Bolsonaro, na última manifestação por sua anistia e dos demais golpistas do 8 de janeiro, afirmou: “Me deem 50% da Câmara e do Senado que eu mudo o destino do Brasil. Nem eu preciso ser presidente.” O atual inelegível compreende que este poder pode ser o novo centro gravitacional.

 

Outra característica da atual conjuntura é a hiperjudicialização pelo STF [6]. O caso atual do IOF é elucidativo: a derrota dos decretos do Executivo nas duas casas legislativas acirrou a tensão entre os poderes. Alexandre de Moraes suspendeu tanto os decretos quanto a decisão do Congresso, e convocou uma audiência de conciliação entre os poderes. Para além do papel de bombeiro, o Judiciário, no meio da crise política, também tenta se apresentar como o poder capaz de conduzir as rédeas do regime.

 

Defender o governo Lula ou nossos direitos democráticos?

 

Entre os diferentes setores da esquerda, a maior parte defende que o governo Lula não consegue avançar com suas pautas por causa da correlação de forças desfavorável com as casas parlamentares e seus dirigentes — o Centrão burguês. Dessa lógica derivam algumas propostas: ampliar o número de ministérios ao Centrão para garantir a governabilidade; ou aplicar a “via colombiana” de Petro, ativando as bases contra as chantagens do Legislativo.

 

Como marxistas, não podemos prever com exatidão os desfechos de ambos os caminhos, mas é possível extrair algumas lições. A primeira opção foi aplicada pelo governo Dilma, também com o Centrão burguês, e acabou fracassando, com o impeachment vindo do próprio Legislativo. Hoje, Lula repete a mesma estratégia: concessão de ministérios ao Centrão burguês, inclusive a figuras ultrarreacionárias. A política de uma grande Frente construída nas eleições de 2022 e no início do governo não mostra sucesso.

 

A segunda opção é mais imprevisível. Petro tem conseguido resistir às chantagens do Parlamento e do Judiciário, aprovando algumas reformas. Mas até mesmo a “via colombiana” mostra limites: o próprio Petro já propôs pacificação com os setores que tentam lhe derrubar do cargo. Como seria a “via colombiana” do governo Lula? Este governo é capaz de ativar a classe trabalhadora para que ela tome os rumos de sua própria história — ou tentará, mais uma vez, repacificar sua relação com o Centrão burguês? O PT já demonstrou incontáveis vezes sua incapacidade de ir além dos limites do próprio regime. Na verdade, é um de seus pilares de sustentação.

 

Com a crise dos decretos sobre o IOF, as Frentes Povo Sem Medo e Brasil Popular convocaram ações de rua com a consigna: “Centrão inimigo do povo. Pelo fim da escala 6x1. Taxação dos super-ricos já!”, para tentar alterar a correlação de forças após a derrota. Mas, ao não pautar o fim do arcabouço fiscal — que limita o orçamento das áreas sociais públicas —, a revogação das contrarreformas ou a suspensão do pagamento da dívida pública imoral, se mostra limitado para resolver os problemas fundamentais do país. Ainda assim, não deixa de ser necessário levar as pautas do Fim da escala 6x1 e a Taxação dos super-ricos, mas devem estar juntas a outras exigências essenciais.

 

O Congresso é, sem dúvida, inimigo da classe trabalhadora. Foi ele quem aprovou a contrarreforma trabalhista, da Previdência, o teto de gastos, privatizações e diversos ajustes. Mas onde o arcabouço fiscal de Haddad-Lula, aprovado pelo Congresso, é a favor do povo? Onde conceder R$ 516,2 bilhões aos grandes produtores, via Plano Safra, ajuda os trabalhadores? Na mesma semana das derrotas no Congresso, o próprio governo liberou R$ 2,5 bilhão em emendas parlamentares [7]. Como isso nos favorece?

 

As contradições do governo Lula pavimentam o caminho para a direita e a extrema direita. O Centrão burguês costura, como via para as eleições de 2026, nomes como Tarcísio (Republicanos), atual governador de São Paulo. É importante destacar dois pontos: a direita e a extrema direita — seja qual for a candidatura — têm como projeto derrotar a classe trabalhadora, destruindo as conquistas democráticas já obtidas, e enriquecer ainda mais os super-ricos; sua derrota só será efetiva por meio da resposta nas ruas, com os trabalhadores mobilizados e organizados no campo revolucionário.

 

No momento, a tarefa da classe trabalhadora hoje é defender os direitos conquistados com muita luta — e reconquistar o que foi arrancado. Para isso, é necessária ampla unidade de ação, sem sectarismos. Se o governo Lula estiver a favor da revogação das contrarreformas, devemos estar unificados na luta. Se estiver a favor do fim do arcabouço fiscal, do fim da escala 6x1, da taxação dos super-ricos (sem repasse de um centavo sequer aos trabalhadores), do aumento salarial, do reforço ao SUS e à educação pública, ou pelo fim do orçamento secreto — também estaremos unificados nas ruas. A luta de classes mostrará.

 

 

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Notas:

[5] Como sócia-menor, a maior fatia é destinada ao setor financeiro-especulativo com o pagamento da dívida pública – o “bolsa banqueiro”.

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