A vitória da juventude trans é a luta nas ruas
- contatorevolucaoso
- 25 de abr.
- 4 min de leitura

Por Beti Clarão, boyceta trans não binárie, psicólogue, artista independente, rapper e militante da Revolução Socialista
Quando você pensa numa pessoa trans, com qual idade você imagina essa pessoa? Você pode ser a exceção, mas eu aposto que você muito provavelmente imaginou uma pessoa jovem adulta. E isso não foi uma falha moral sua, de forma alguma. É algo estrutural. Nós, pessoas trans, dificilmente chegamos à velhice, mas isso é papo pra outro texto. A questão aqui é que nós, pessoas trans, também fomos crianças trans. Na minha infância, eu não fazia ideia de que era possível ser trans, achava que era só um desejo de “ter nascido menino”. E que ficaria por isso mesmo. Essa eterna frustração. Se eu tivesse tido acesso a profissionais da saúde preparades para atender crianças como eu, poderia ter me descoberto muito antes e não ter passado por muita coisa ruim que passei nesse trajeto. Como por exemplo, a puberdade que é construída socialmente como “feminina”.
Eu nunca quis isso. Aprendi a gostar do meu corpo depois das mudanças dessa puberdade, mas preferia mil vezes como era antes. Lembro de uma cena memorável: eu andando sem camisa, na infância, na praia. Aproveitando muito e falando para todes ao meu redor: “vou aproveitar enquanto eu posso”. Mas porque isso teve que ter prazo pra acabar? E se eu quiser recuperar isso, vou precisar operar investindo mais de 10.000 reais nisso. Tudo seria mais simples se eu tivesse tido acesso a bloqueadores hormonais na pré adolescência. E é exatamente isso que o CFM quer brecar. Que crianças trans tenham acesso a esse tipo de tecnologia, que previne fenômenos como suicídio, tende a melhorar a qualidade de vida e nos deixar mais confortáveis com nós mesmes. Além disso, proibir o uso dessas tecnologias não vai impedir que esses usos aconteçam, vai sim fazer com que aconteçam de forma marginalizada, por conta, e sem amparo de profissionais da saúde.
São vidas que estão em jogo. Para começo de conversa, a Resolução CFM nº 2.427 foi escrita de forma binarista, desatualizada e inadequada, usando termos que nem são mais utilizados para se referir a pessoas trans, como por exemplo “disforia de gênero”. Não é toda pessoa trans que sente disforia, e nem toda pessoa que sente disforia que é trans. Crianças trans são interpeladas por duas opressões, pelo menos. O etarismo e a transfobia.
Existe uma grande crença etarista que pontua que crianças não têm o poder de decidir nada sobre si mesmas. Aí quando junta com a transfobia, essa intersecção se torna mais nociva ainda, acarretando possíveis desfechos sintomáticos como o suicídio, por exemplo. As crianças, nessa sociedade capitalista colonial em que vivemos, são consideradas “propriedades” dos adultos, principalmente dos pais. E é subentendido que a autonomia dessa criança não deve existir, muito menos se ela for uma criança trans. Crianças trans não têm, na maioria das vezes, o direito assegurado de existir plenamente com suas identidades de gênero.
As infâncias trans são, muitas vezes, abafadas e invalidadas pelo combo transfobia e etarismo. Assim como as pessoas trans adolescentes. Segundo dados do estudo “Transgender Adolescent Suicide Behavior” publicado em um periódico da Acadêmia Americana de Pediatria, um (01) a cada (02) adolescentes transmasculinos já tentaram suicídio. Sim, isso mesmo que você leu. É muito comum na nossa comunidade, principalmente transmasculine, perder amigues, conhecides e afetos para o suicídio. Considero que pessoas trans e dissidentes no geral não se suicidam, e sim são suicidadas. E essa resolução do CFM é um prato cheio para esse tipo de acontecimento. Proibir tecnologias de afirmação de gênero é pedir pra que es nosses façam tudo isso na clandestinidade. Sem acompanhamento de profissionais da saúde. Isso tudo tende a desregular o humor, além de ser gerador de muita ansiedade pela possibilidade de não termos acesso às tecnologias de forma acessível e segura.
Já vi muito amigo transmasculino ficar sem acesso a essas tecnologias por questões financeiras. Acompanhei de perto o humor desregulando, a menstruação voltando, a “guerra hormonal” que rola no corpo. Isso falando de adultes. Imagina crianças e adolescentes, que já tem mil coisas pra lidar por conta da idade, mil inseguranças, ainda terem que lidar com a proibição de tecnologias que já são comprovadamente eficazes e que tendem a melhorar a qualidade de vida das pessoas trans. É consenso entre quem estuda transgeneridade: o quanto antes a pessoa tiver acesso a tecnologias afirmativas de gênero, melhor. Se ela quiser, obviamente. Não é toda pessoa trans que deseja fazer o uso dessas tecnologias, mas muitas não só desejam, como tem sua qualidade de vida melhorada por elas, como foi o meu caso.
A testosterona mudou minha vida, assim como um bloqueador hormonal também poderia ter mudado a minha adolescência. Me angustia saber que a transfobia nos dificulta a luta por direitos novos, fazendo a gente ter que lutar e gastar muita energia pra manter e não perder os direitos que já temos. Eles acham que nós vamos deitar? Não vamos! A vida das crianças e adolescentes da nossa comunidade é muito valiosa pra nós, e importa muito. Não aceitaremos calades essa tentativa de deixar nossas crianças e adolescentes a mercê do suicídio e de outras questões sérias de saúde.
Os direitos trans foram conquistados com muita luta, sangue e suor. Aí vem o Conselho de Medicina com seu viés transpatologizante que na verdade, não demonstra estar realmente preocupado com nós, e sim com o ato de compactuar com discursos que nos invalidam. É perceptível no texto a ideia da transgeneridade como algo patológico. Querem decidir sobre os nossos corpos sem nós, igual eles fizeram por muito tempo. Se não fosse as pessoas trans que lutaram antes de nós e discordaram de muita coisa, provavelmente eu não estaria aqui, sendo eu, sendo boyceta trans não binárie.
Não é só por nós - que estamos vives agora - que lutamos, mas também pelas pessoas trans do futuro. É a nossa Transcestralidade. Se es nosses não tivessem lutado no passado, tudo seria muito diferente no presente. Vamos às ruas, algumas cidades dia 24, outras dia 25, pela revogação dessa resolução transfóbica que quer privar nossas crianças e adolescentes de terem seus direitos assegurados. A juventude trans existe e importa sim, e vamos defende-la até o final.
Pela defesa da juventude trans e travesti! Que elus decidam por si mesmes, basta de políticas que diminuem a qualidade e espectativa de vida delus!