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Resistência na existência: Nossas bandeiras não serão seu lucro

Por Kauã Shimabukuro, publicitário, pesquisador de cultura e Rafael Pereira, designer ativista, militantes do Revolução Socialista em Curitiba/PR.


Passados dois terços de junho e novamente, grandes marcas colocam bandeiras coloridas em suas fachadas, decoram suas lojas e reservam alas cheias de produtos com arco-íris para chamar a atenção, mesmo que você observe pelo lado de fora. Fotos de perfil nas redes sociais, comerciais na televisão e outros tantos vídeos curtos pulando nas telas, saturados de palavras como: amor, diversidade, respeito e orgulho.

Estranho… o que aconteceu nos outros 11 meses do ano?

É muito comum que durante este período, nomes influentes da mídia, celebridades e também pessoas anônimas, que atendem a impressões de um imaginário sobre como um grupo deve parecer - os estereótipos - estampem campanhas em outdoors, embalagens, todo e qualquer espaço onde possa-se propagar mais um mês temático, ofuscando o orgulho de existir e resistir expressado neste mês pelas pessoas da comunidade LGBTI+ (Lésbicas; Gays; Bissexuais; Transexuais, Transgêneros e Travestis; Intersexuais e outras orientações sexuais, identidades e expressões de gênero). A comunidade LGBTI+ é composta por pessoas de diversas classes sociais, mas muitos indivíduos enfrentam discriminação e opressão, especialmente aqueles que pertencem a classes marginalizadas, como a classe trabalhadora.

Um olhar mais treinado percebe nessas táticas da comunicação, sofisticadas técnicas de publicidade e propaganda, design e semiótica, esta última investiga como qualquer mensagem com um significado pode ser interpretado pelo ser humano através de linguagem verbal e não-verbal. Assim, por meio dessas técnicas, busca-se transmitir com uma linguagem atual e despojada, o quanto os interlocutores se importam e estão “por dentro do assunto”. Ainda que essas táticas sejam recorrentes e padronizadas, muitos de nós, encantados e habituados à rejeição, podemos receber essa mensagem, enxergar nossas semelhanças e pensar: “Olha só! Essa marca está do nosso lado”.

Com isso, a pergunta que buscamos provocar é: Materialmente, estão de fato?

É importante destacar que para além da heteronormatividade, termo usado para descrever situações nas quais orientações sexuais diferentes da heterossexual são marginalizadas, ignoradas ou perseguidas por práticas sociais, crenças ou políticas; e também da cisgeneridade, termo que define a condição da pessoa cuja identidade de gênero corresponde ao gênero que lhe foi atribuído no nascimento; reivindicamos como essencial a inclusão e representação de outras possibilidades de existência e de relacionamentos, em suas múltiplas formas, mesmo que estas não se encaixem em um modelo conservador de família atribuído erroneamente à ordem natural.

Os veículos de comunicação em massa são, desde seu advento, uma potente arma ideológica capaz de construir e moldar o imaginário social. Se antes, o aparato de domínio poderia se fortalecer tão somente nos espaços religiosos fundamentalistas, que pela manutenção de sua fé e crenças, agridem e estimulam a violência física e psicológica contra quem ousa ser diferente; hoje, falar de representatividade é debater sobre uma forma de produção cultural que confronta diretamente a propaganda ideológica neoliberal a serviço de um modelo de família mantido pelo patriarcado, regido pela propriedade privada e que mantém nossa sociedade conservadora, além de ser ostensivamente esgotada como instrumento de pânico moral pela extrema-direita.

Extrema-direita essa que com sua política estimula um projeto de sociedade incapaz de conviver com a diferença, que ataca as minorias identitárias já vulneráveis ao mesmo tempo que grita aos quatro ventos em defesa da liberdade do "indivíduo". É no mínimo irônico perceber que o discurso que tanto fala das liberdades, seja o mesmo que orienta a violência e o isolamento social a pessoas que buscam expressar livremente sua subjetividade, eliminando qualquer comportamento que fuja das garras de seu controle.

Uma tática comum é a da captação desse público-alvo, mirando surfar em um movimento que celebra o diferente, que demarca sua existência e exige o direito à presença nos espaços, opondo-se à vergonha que tentam inserir em suas mentes contra sua própria natureza.

Entretanto, não podemos cair na armadilha que é limitar a representatividade à quantidade de personagens que têm ganhado espaço nas novelas, filmes ou em uma ou outra cadeira das narrativas hegemônicas, pois nunca foi por conciliação entre classes que os direitos foram conquistados, foi por meio de muita luta e resistência. Basta um deslize e tudo é novamente retrocedido por causa da fragilidade dessas ditas vitórias.

Vamos lá: foi somente em 1990 que a homossexualidade deixou de ser considerada doença mental pela OMS; foi em 2008 que o SUS passou a realizar cirurgias de redesignação sexual; em 2011 o estado brasileiro reconhece a união estável entre pessoas LGBTI+; desde 2013 o casamento civil de pessoas LGBTI+ é possível e desde 2015 casais LGBTI+ têm direito a adoção de crianças e adolescentes. Desde 2018, pessoas trans têm direito à retificação de nome e gênero em cartório, desde 2019 a transexualidade não é mais considerada uma doença e a LGBTfobia é considerada crime; desde 2020 pessoas LGBTI+ podem doar sangue; desde 2021 o código nacional de justiça permite o registro de sexo ignorado para crianças intersexo.

Listando assim, essas conquistas parecem ser muitas, sendo utilizadas até mesmo para uma inversão de narrativa por grupos LGBTfóbicos, que as chamam de privilégios. Mas, se você quiser, volte ao parágrafo anterior, releia e perceba a natureza dos direitos que temos lutado. São direitos básicos que sequer deveria haver discussão a respeito. Não ser associada à doença, ter sua união com a pessoa que ama reconhecida em lei, adotar crianças órfãs que precisam de um lar, ter um nome e receber um tratamento que não te causa sofrimento, enfim, ser considerada gente, com o mínimo para a dignidade e o bem viver. Ainda assim, todas essas leis não implicam garantias, vide a quantidade de direitos constitucionais como a moradia, saúde e transporte, dentre outros que, acabam resumidos apenas a mais uma lei no papel.

Na reportagem publicada em junho de 2022 pelo G1, destaca-se que 1,7 mil LGBTI+ foram vítimas de agressões físicas ao longo de 2021, sendo que em oito estados brasileiros não há dados sobre casos de violência contra a comunidade. No mesmo ano, foram registrados 140 casos de assassinatos contra pessoas trans, como relatado em uma matéria do Centro Nacional de Justiça. Esses dados são necessários para compreendermos que esse discurso de “liberdade do indivíduo” que o neoliberalismo promove não funciona na prática, já que a liberdade só é concedida para aqueles que estão de acordo com as construções sociais fomentadas e mantidas por séculos por homens, brancos, héteros e cis, em um ciclo ininterrupto de opressões. Existe um apagão de dados porque não há interesse político com força relevante para fazer o sistema funcionar a favor também dessas vidas.

Esses dados também são importantes para pensarmos o que as empresas que são nossas “'aliadas" fazem na prática para garantir nossa segurança. Na verdade, elas utilizam estratégias de identificação, com os rostos que estampam as suas propagandas para aumentar seu nicho de mercado e consequentemente seu lucro. Ao ver um comercial, um influencer fazendo resenha de um produto ou aparecendo empoderado em um evento, é esperado que o público se identifique e se sinta motivado a entrar em uma loja, física ou virtual, e por fim, adquira o mesmo produto para se sentir pertencente, torne-se mais um consumidor.

Tokenismo é a prática de fazer apenas um esforço superficial ou simbólico para ser inclusivo para membros de minorias, especialmente recrutando um pequeno número de pessoas de grupos sub-representados para dar a aparência de igualdade racial ou sexual dentro de uma força de trabalho. O esforço de incluir um funcionário simbólico em uma força de trabalho geralmente visa criar a impressão de inclusão social e diversidade (racial, religiosa, sexual etc.) a fim de desviar acusações de discriminação.

Isso nos faz refletir sobre de que forma essas empresas contribuem para que, ao utilizarmos seus produtos nas ruas em busca dessa identificação e pertencimento, coloquemos em nossos peitos grandes alvos objetos para esta violência. Não podemos, nesses casos, ficar na superficialidade, devemos ir à raiz do problema.

É indiscutível que existe um despreparo sistêmico intencional das instituições, cúmplices de uma lógica artificial criada por elas mesmas, para prestar o devido acolhimento das vítimas, assim como negligência intencional nos procedimentos de registro e encaminhamento dessas agressões, que poderiam ser instrumentos para garantir a diversidade nos espaços restritos a essas pessoas que, impedidas por violências muitas vezes sutis, são jogadas de escanteio para fora de um planejamento que garanta a promoção de uma educação emancipadora e inclusiva que de fato pode proteger essas vidas.

Todas essas barreiras são como uma sucessão de portas de armários que precisam ser abertas e atravessadas por quem já tem sua integridade fragilizada e, até mesmo em espaços onde pessoas que bradam estar ao nosso lado, afirmam ter amigos e amigas ou alguém na família da comunidade, que lutam pelo fim do capitalismo e de suas contradições; até mesmo nesses espaços observa-se a reprodução dessa opressão que nega a importância dessas vivências e do debater com seriedade desse tema.

Como tudo dentro do capitalismo, o objetivo maior é o lucro, principalmente se com isso, as lutas e inquietações da classe possam ser apaziguadas. O indivíduo dentro do capitalismo fica imerso, alienado e entorpecido por uma propaganda ideológica de um ciclo exaustivo, o qual faz com que não se conectem a um legado de luta e resistência, mas sim, às suas possibilidades individuais de conquistas dentro do jogo do acúmulo e ostentação.

Espaços amigáveis a pessoas LGBTI+ podem sim render um bom dinheiro, principalmente pela baixa oferta que, mesmo nas grandes capitais do país, atraem um nicho específico de mercado, comparado a estabelecimentos "normais". É preciso coragem para tomar um lado nessa luta, coragem para intervir em situações onde a LGBTfobia se faz presente e coragem e disposição são atributos que não faltam à classe trabalhadora, vide os grandes levantes populares da última década.

Essa mesma coragem leva muitos desses espaços a serem criados por nós e para nós, como uma atitude de resistência, tal qual as que originaram os movimentos de revide à violência do Estado com sua repressão policial. Precisamos manter a motivação que nos move e que alimenta a luta de classes para garantir o apoio e a manutenção de portas abertas, para lutar de maneira segura e escaparmos de ambientes hostis à nossa existência em sua plenitude. Esses estabelecimentos atraem e fidelizam pela experiência, pela possibilidade de nesses espaços, permitirem a liberdade de suas mini-Paradas do Orgulho ao longo do ano - mas tem que ser noturno, porque imagine se uma criança vê dois homens se beijando.

Finalizando, uma das nossas tantas bandeiras de luta como militantes deve ser também propagar o entendimento da necessidade de pessoas da classe trabalhadora nos espaços de liderança e decisão, nos espaços de direção, para que sejam capazes de representar essas vivências de maneira genuína, respeitando sua pluralidade e defendendo os instrumentos de capacitação e formação revolucionária para isso.

Os nossos corpos e as nossas vivências devem ser compreendidos como uma possibilidade de luta. Falar de um novo modelo de sociedade significa, necessariamente, repensarmos as nossas formas de afeto, de convivência, de respeito a subjetividade e sua compreensão e importância na construção e representação do sujeito no coletivo. Vale reforçar que coletivo e indivíduo não são dois polos que se chocam, pois, um depende do outro. O sujeito é compreendido e validado a partir de um coletivo, pela sociedade dentro de um tempo e espaço. Precisamos pensar em uma nova forma de sociedade, guiada por uma cultura dos afetos e que respeite e valorize as nossas relações no coletivo, que não somente confronte a LGBTQIA+fobia mas todas as formas de opressões enfrentadas pela classe trabalhadora.

Os meios de produção cultural massivos são hoje concessionados pelo Estado burguês a serviço de seus interesses e por isso, não basta apenas aparecer nas telas, painéis e cadeiras de ministérios, devemos inverter a lógica, denunciar, ocupar, falar sobre socialismo e partido revolucionário, convencer politicamente, organizar para então expropriar e sonhar com um mundo melhor possível.

 

Fontes externas:

https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2022/06/28/17-mil-lgbqia-foram-vitimas-de-agressoes-fisicas-em-2021-8-estados-nao-tem-dados-sobre-o-tema.ghtml

https://www.cnj.jus.br/observatorio-dos-direitos-humanos-violencia-contra-pessoas-trans-exige-mobilizacao-do-poder-publico/#:~:text=Em%202022%2C%20foram%20131%20casos,pessoas%20trans%20na%20s%C3%A9rie%20hist%C3%B3rica).


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