Feminicídio é Política: O Corpo da Mulher como Campo de Batalha
- Comunicação RS
- 6 de ago.
- 8 min de leitura
Por Juliane Magerski e Vanessa Calmon
A frase “segura tua cabra que meu bode tá solto” e suas variações são costumeiramente ditas entre os pais no contexto da notícia do sexo, ainda na gestação ou nos encontros que acontecem nos parquinhos das crianças. É logo cedo que o sexo feminino já tem que conviver ou com repressão ou com a violência. Já é subentendido que viver dignamente exercendo as próprias vontades não é um direito para aquelas que são criadas e socializadas como meninas.

Essa violência é sustentada por um sistema sociopolítico patriarcal que normaliza a brutalidade e tem sido intensificada pelo crescimento do discurso de ódio misógino e machista (expressão de violência que reforça a dominação masculina e busca punir mulheres por desafiarem normas patriarcais), propagado por setores da extrema direita no Brasil. Casos brutais e racistas como o da mulher indígena mantida por nove meses sob abusos dentro de uma cela no Amazonas por agentes do Estado, ou o de Juliana, que teve o rosto desfigurado após sofrer mais de 60 socos do então namorado em um elevador em Natal, revelam o retrato cruel da violência contra todas as mulheres.
O QUE É FEMINICÍDIO?
O maior grau de violência contra a mulher - o feminicídio - não constitui um evento isolado, repentino ou inesperado. Ao contrário, faz parte de um processo contínuo de violência e inclui uma vasta gama de abusos, desde verbais, físicos e sexuais, como o estupro, e diversas formas de mutilação e de barbárie, como explica a socióloga Eleonora Menicucci. Os atos individuais ou em grupo contra mulheres são característicos: imposição de grave sofrimento às vítimas, com prevalência de lesões no rosto ou em locais do corpo que caracterizam a anatomia feminina (seios, ventre e vagina). É importante mencionar e incluir também os casos de transfeminicídios, que segundo o entendimento jurídico mais recente, considera que a proteção legal contra deve ser estendido mulheres trans e travestis, independentemente de cirurgia de redesignação sexual ou alteração de documentos civis
Para entender o que é o feminicídio é necessário compreender o que é a violência de gênero final e fatal das diversas violências que atingem as mulheres em sociedades marcadas pela desigualdade de poder e o binarismo dos gêneros masculino e feminino, além de construções históricas, culturais, econômicas, políticas e sociais discriminatórias.
Ele é sustentado por estruturas muito bem consolidadas como a misoginia, o patriarcado, o racismo, a cisheteronormatividade e a monogamia; mulher que decide ou “dá a entender” que não quer mais cumprir o papel social atribuído a ela dentro da relação não é “pessoa direita”, tornando-se a vilã que faz o homem de bem, trabalhador, sofrer. "Enciumado", "inconformado com o término", "descontrolado" ou até "apaixonado" são os adjetivos dados aos criminosos e a vítima geralmente é vinculada ao questionamento “mas o que ela fez pra ele?”, invertendo e alterando-se de maneira implícita, o papel do criminoso e da vítima.
“A mulher sempre foi tratada como uma coisa que o homem podia usar, gozar e dispor”, afirma Marixa Fabiane Lopes Rodrigues, juíza de Direito do Tribunal de Justiça de Minas Gerais. “Nomear e definir o problema é um passo importante, mas para coibir os assassinatos femininos é fundamental conhecer suas características e, assim, implementar ações efetivas de prevenção.”
ATLAS DA VIOLÊNCIA
O 19º Anuário da Segurança divulgado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) na quinta-feira, 24/07, aglomera e apresenta dados da realidade que as mulheres conhecem muito bem, o da violência.
Há apenas 10 anos a legislação brasileira passou a compreender a gravidade dos crimes de gênero como algo distinto da violência urbana comum. Com a Lei 13.104/15, o termo "feminicídio" foi incluído, reconhecendo oficialmente os homicídios motivados pelo fato de as vítimas serem mulheres e enquadrando a violência de gênero como um problema estrutural.
Diferentemente dos dados mortes violentas em geral (homicídios e letalidade criminal), que recuaram 5,4%, o Anuário Brasileiro de Segurança Pública teve 1.492 feminicídios em 2024, maior número desde 2015, quando a legislação brasileira (Lei 13.104/15) passou a definir esse crime.
Todos os dias, quatro mulheres são mortas no nosso país— em sua maioria dentro do próprio lar, pelas mãos de homens que diziam amá-las.
Em mais de 80% dos casos de feminicídio os assassinos eram atuais ou ex-companheiros das vítimas. 97% assassinadas por homens 70% entre 18 e 44 anos 64% mulheres negras 64% mortas dentro de casa
O número de feminicídios aumentou em 11 dos 27 estados brasileiros, totalizando 757 casos — o que representa 50,7% de todos os registros no país. Os dados mais alarmantes vêm de São Paulo, com 253 ocorrências; Minas Gerais, com 163; e Bahia, com 115.

ESTUPRO E OUTROS TIPOS DE VIOLÊNCIA
Casos de estupro ultrapassaram 83 mil, com quase 90% das vítimas sendo mulheres. Entre as vítimas, 3 em cada 4 tinham até 14 anos, o que configura estupro de vulnerável.
87,7% mulheres ou meninas 55,6% mulheres ou meninas negras 76,8% vulneráveis
Dados divulgados pelo canal de conteúdo adulto Pornhub referente ao período de 2024 apresenta “novinhas” como um dos termos mais buscados. Ademais, de acordo com o mesmo site, o Brasil alcançou a sétima posição entre os países que mais acessam conteúdo pornográfico no mundo, além do posto de campeão global em consumo de pornografia trans, segundo outros relatórios de grandes sites do ramo. Apesar de liderar o consumo, o Brasil também é o país que mais assassina travestis e mulheres trans. Tais dados são reflexo do machismo onde tais corpos são sinônimos de prazer, um contraste entre desejo e violência que revela o impacto da desumanização (objetificação) e fetichização desses corpos.
Além disso, a violência doméstica tem se intensificado, extrapolando os limites da agressão física para englobar abusos psicológicos, patrimoniais e chantagens emocionais. Em todos os relatos, é evidente a cultura da posse: os agressores se comportam como donos dos corpos, das relações sociais e profissionais, dos recursos financeiros — e até da vida das vítimas.
Apesar de alarmantes, os números ainda não refletem a real dimensão da violência contra a mulher. Milhares seguem em silêncio - impedidas de denunciar por medo, vergonha, ausência de apoio ou pela consciência de que, muitas vezes, o próprio sistema contribui para sua revitimização.
De acordo com o FBSP, os dados de feminicídio também são subnotificados. Isso porque o sistema de justiça tende a interpretar o crime de forma restrita — apenas nos casos em que a morte ocorre em contextos de violência doméstica ou intrafamiliar.
Assim, homicídios motivados por desprezo ou discriminação que acontecem fora do ambiente familiar, ou que envolvem agressores sem vínculo direto com a vítima, como companheiros ou parentes, acabam não sendo classificados como feminicídio.
Por último mas não menos importante, devido ao recorte racial destes dados, mulheres negras estão estruturalmente em posição de prejuízo, pois têm somadas a estas violências, a redução de seus direitos legais pela gentrificação e favelização, pelo preterimento e solidão imposta, hipersexualização e invalidação, mantida por meio de estereótipos como o da “preta raivosa” e outros vestígios socioculturais de uma desumanização violenta do racismo estrutural. É comum ouvir relatos e também as polêmicas sobre a distinção dos feminismos, já que enquanto uma parcela buscava sua emancipação e liberdade, outra nunca sequer teve a opção de não trabalhar, inclusive nas casas de senhoras brancas.
ROMPER COM O CICLO DE VIOLÊNCIA
O ciclo da violência contra as mulheres precisa ser rompido com urgência. Enquanto o patriarcado continuar sustentando as estruturas da sociedade, as mulheres seguirão sendo feridas — física, emocional e existencialmente. O machismo e a misoginia estão impregnados em todos os espaços: nas relações pessoais, nas instituições e numa cultura que ensina que o sofrimento feminino é algo natural, algo a ser tolerado.

O machismo também se aproveita da monogamia, pois não são homens aleatórios que estão cometendo esses assassínios: são precisamente aqueles com quem as vítimas tiveram um vínculo romântico, monogâmico e heteronormativo. É imprescindível responsabilizar os homens, enquanto grupo social por tamanha violência, além de fortalecer e oferecer redes de apoio e acolhimento, atendimento digno às vítimas, garantia de direitos democráticos, com proteção, justiça comprometida e políticas públicas efetivas.
Cada agressão confirma que o sistema tem falhado com as mulheres todos os dias.
DIREITOS ADQUIRIDOS E A ADQUIRIR, CONTRA A EXPLORAÇÃO E A OPRESSÃO CAPITALISTA!
“Basta uma crise política, econômica e religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados. Esses direitos não são permanentes“ (Simone de Beauvoir)
Andamos a passos lentos na garantia de direitos das mulheres, cada vitória deve ser comemorada mas também é um lembrete das opressões e do quanto ainda temos de conquistar. A extrema direita segue empenhada em atacar os direitos já conquistados, estas são as ações mais recentes:
PEC 164/12, proposta pelos deputados Eduardo Cunha (PMDB-RJ) e João Campos (PSDB-GO), visa garantir o direito à vida desde a concepção, e não apenas após o nascimento. Na prática, a proposta proíbe o aborto no Brasil nas situações hoje autorizadas em lei. São elas: risco de morte para a gestante, gravidez resultante de estupro e anencefalia fetal (má-formação do cérebro). Além disso, a proposta interrompe pesquisas com células troncos, impede a fertilização in vitro, o congelamento de óvulos, o acesso e uso da pílula do dia seguinte. Atualmente a PEC 164/12 está aguardando a criação de uma Comissão Temporária pela Mesa Diretora da Câmara.
PL 1904/24 (PL do estuprador), de autoria de Sóstenes Cavalcante - PL/RJ , Evair Vieira de Melo - PP/ES , Delegado Paulo Bilynskyj - PL/SP, equipara a pena para a interrupção da gestação acima de 22 semanas à de homicídio – 20 anos de prisão – mesmo para mulheres vítimas de estupro.
Em junho de 2024 o Plenário aprovou a urgência para o projeto, mas a votação não avançou devido à forte mobilização.
Uma perspectiva de gênero marxista revolucionária deve ir além da igualdade formal e encarar como a opressão de gênero está profundamente ligada à exploração capitalista, cujas raízes materiais incluem a desigualdade salarial, a divisão racial do trabalho, a feminização da pobreza e a mercantilização do cuidado. A luta contra a opressão de gênero é uma luta contra o próprio capitalismo. A liberação do gênero não será alcançada por reformas graduais, mas por uma revolução com um horizonte socialista e internacionalista.
PRECISAMOS AVANÇAR:
Pelo aborto legal, livre, voluntário, seguro e gratuito no SUS
Por trabalho digno e igualdade salarial para combater a feminização da pobreza
Por restaurantes, lavanderias e creches públicas, em combate às duplas e triplas jornadas impostas pelo trabalho de cuidado
Verba pública para a saúde e a proteção de mulheres vítimas de violência
Contra a extrema direita e seus planos reacionários e anti direitos
Contra o Arcabouço Fiscal, a escala 6x1 e pela revogação de todas as Contra reformas.
Revolução será feminista ou não será!!
Nenhuma a menos!
Referências:
Feminicídio #InvisibilidadeMata. Organização e Coordenação Editorial Débora Prado e Marisa Sanematsu. Realização Instituto Patrícia Galvão - Mídia e Direitos. 2017.
Descolonizando afetos. Geni Nuñez.
Agência Câmara de Notícias.
Imagem: Beth Moysés
5664 Mulheres , 2014
A violência contra a mulher é tema recorrente da obra da artista Beth Moysés. "5664 Mulheres", de 2014, é composta de cápsulas de munição, e representa o número de 5664 mulheres que foram assassinadas por seus parceiros no Brasil em 2013.









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Nenhuma a menos! Texto fantástico e muito necessário camaradas!
Excelente elaboração!
Texto fenomenal, camaradas!