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Aborto e Direitos Reprodutivos: uma discussão classista

Por Mariane Panek - Psicóloga Comunitária (CRP0832713) e militante da Revolução Socialista


A atuação da então relatora, agora ministra aposentada Rosa Weber, provocou um abalo profundo na estrutura conservadora brasileira. Ao colocar em pauta a ADPF 442 no STF, que busca a descriminalização do aborto, ela trás esse tema sensível para o centro do debate jurídico. Em uma sociedade marcada pela forte influência do conservadorismo religioso, a discussão sobre o aborto continua a ser um tabu persistente, tornando-se um tópico de extrema pertinência e urgência. A ministra baseou sua argumentação na perspectiva de que a criminalização do aborto constitui uma violação dos direitos fundamentais das mulheres, incluindo a autodeterminação pessoal, a liberdade e a intimidade. O impacto do seu voto indicou o início de um processo de reconfiguração no panorama do debate público sobre uma das demandas históricas do movimento feminista brasileiro: a ampliação dos direitos reprodutivos, com um foco especial na questão do aborto.


Rosa Weber também enfatizou que a maternidade deve ser encarada como uma escolha, e não como uma obrigação imposta coercivamente. Ao forçar a continuidade de uma gravidez, independentemente das circunstâncias pessoais e específicas enfrentadas pela gestante, tal medida representa, segundo ela, uma forma de violência institucional, prejudicando a integridade física, psicológica e moral da mulher, relegando-a ao status de um instrumento sujeito às decisões do Estado e da sociedade, mas não como alguém com voz própria.

Também ressaltou que o Código Penal brasileiro, que criminaliza a interrupção da gravidez, remonta à década de 1940, um período em que as mulheres enfrentavam uma cidadania de segunda classe, com limitações significativas em seu espaço de participação e influência no debate público. Para efetuar mudanças nessa estrutura, é essencial que o debate vá além de apenas considerar o desenvolvimento do cérebro ou respostas sensoriais de um feto. Devemos abordar as questões sociais e estruturais que permeiam a forma como lidamos com situações que envolvem os direitos e a integridade das mulheres, incluindo seus direitos reprodutivos como um todo. Também é crucial considerar como o modelo capitalista frequentemente oprime as populações marginalizadas ao lidar com essas questões, e portanto é uma luta de todos os oprimidos.


O aborto já é legalizado em três situações específicas no Brasil: quando a gravidez é resultado de estupro, quando há risco de vida para a gestante e quando o feto apresenta anencefalia, ou seja, má formação do cérebro. Nessas circunstâncias, o procedimento deveria ser oferecido gratuitamente pelo Sistema Único de Saúde (SUS), sem a necessidade de uma decisão judicial. Na prática, isso não ocorre devido à influência da visão moral religiosa, uma perspectiva que permeia a sociedade desde seus primórdios e está presente em todos os debates.


A questão do aborto é, na verdade, mais uma ferramenta da estrutura patriarcal que busca exercer controle sobre os corpos das mulheres.


As raízes dessa estrutura remontam às civilizações antigas, como Suméria, Egito e Roma. Nessas sociedades, o casamento desempenhava um papel crucial, servindo como um mecanismo para estabelecer alianças, fortalecer o poder econômico das famílias, garantir a continuidade das linhagens e proteger direitos de propriedade. Dentro desse contexto conservador, há uma norma cultural que permeia até hoje, onde os casais devem se unir em matrimônio e, a partir disso, formar uma família com filhos.


A responsabilidade primordial pela criação dos filhos recai pesadamente sobre as mulheres na relação, exigindo delas mudanças significativas em suas vidas, rotinas de trabalho, interações sociais e dinâmica familiar para assumir essa função. Essa dinâmica tem raízes nas origens históricas, uma vez que o casamento estava intrinsecamente ligado à reprodução e à transferência de propriedades. Os filhos legítimos do sexo masculino do casal eram os herdeiros naturais das propriedades paternas, enquanto as filhas tinham uma trajetória reprodutiva semelhante. Em uma época em que os testes de DNA não existiam, a virgindade da mulher desempenhava um papel fundamental na garantia da paternidade dos filhos, consolidando o papel da mulher como uma figura de transição da família paterna para a família do marido. Nesse contexto, a mulher se submetia à autoridade do "pater familias", o chefe da família que detinha poder sobre todos os outros, inclusive sobre os direitos de ir e vir da esposa.


Essa abordagem, aparentemente centrada na preocupação com o futuro dos fetos que poderiam se tornar crianças, dissimula o fato de que, na prática, as crianças que esses fetos se tornariam são igualmente negligenciadas (ou até mais) do que as próprias mulheres na sociedade.

Considerando que a sociedade é moldada por seus membros, as crianças desempenham um papel essencial na construção do futuro, e esta negligência não apenas reflete a visão de que nossos úteros são tratados como meras fábricas de mão de obra para sustentar o sistema capitalista, mas também atua como um obstáculo ativo para que as novas gerações tenham a oportunidade de criar uma sociedade onde não haja esse mecanismo de exploração. Assim, o mesmo machismo e falta de apoio que sobrecarregam as mulheres com um fardo mental, social e moral esmagador também mantêm nossas crianças reféns de um sistema punitivo, uma educação desvalorizada e uma carência de afeto. Tudo isso é resultado de uma estrutura que se baseia no individualismo e na opressão.


A abordagem de enfrentar questões complexas que são resultado do capitalismo por meio da punição e do encarceramento, beneficia os mesmos que propõem essas alternativas, deixando as pessoas que enfrentam verdadeiramente essas situações à mercê de um sistema que não está concebido para promover o bem-estar social da classe trabalhadora. Isso também nos impede de explorar todas as complexidades que cercam o tema, resultando em negligência na realização de pesquisas aprofundadas e na compreensão das implicações sociais envolvidas. Isso não se mostra eficaz e não reduz a ocorrência dos problemas sociais em nenhuma situação, como se evidencia no caso da "guerra às drogas", por exemplo. As pessoas não deixam de consumir drogas ou de necessitar de procedimentos de aborto por meio da punição; em vez disso, isso apenas perpetua a falta de conhecimento e ignorância em relação às causas subjacentes.


Restringir o debate sobre o aborto a questões superficiais e específicas do ato em si é problemático, uma vez que há aspectos muito mais abrangentes em jogo. Estes aspectos, para os quais não possuímos respostas definitivas, só poderão ser plenamente compreendidos após a descriminalização, para que possamos analisar as consequências de anos de punições. Essas consequências são, por sua vez, o resultado de períodos prolongados de opressão, que têm relegado as mulheres a papéis de "exércitos de reserva" e cuidadoras precarizadas, frequentemente marginalizadas e silenciadas.


Essas complexidades e desafios na discussão também evidenciam a limitação da justiça burguesa em abordar questões profundas e sistêmicas. A estrutura jurídica tradicional, muitas vezes enraizada em valores e interesses da classe dominante, tende a tratar questões sociais complexas de maneira simplista e punitiva. Nesse sentido, a descriminalização e a análise aprofundada das consequências da punição representam não apenas um passo em direção à justiça social, mas também uma crítica ao sistema jurídico burguês que frequentemente perpetua as desigualdades em vez de compreender e resolvê-las de forma eficaz. Não são todas as mulheres que enfrentam punições pela escolha de realizar um aborto, e nem todas precisam abdicar de suas vidas para assumir a maternidade, a experiência da maternidade varia drasticamente de acordo com a classe social.


A infância de uma criança em uma comunidade periférica é profundamente influenciada pelas consequências das ações das famílias privilegiadas, que dependem da opressão e exploração do trabalho das famílias sem acesso aos meios de produção. Para as mulheres burguesas, a maternidade é uma escolha, enquanto para as mulheres pobres e trabalhadoras, essa opção é moldada por um discurso punitivo impregnado de conservadorismo, caso optem por não assumir esse papel, mesmo enquanto homens escolhem não ser pais e não são julgados por isso. O debate fundamental aqui deve girar em torno da descriminalização, a fim de abordar a questão de maneira apropriada, e da legalização, para pôr fim às tragédias que afligem mulheres negras, pobres e de áreas periféricas. O discurso moral não deve ocupar o centro da discussão, tampouco deve ser considerado um argumento válido para enfrentar um problema estrutural e complexo. Em vez disso, devemos lutar e buscar soluções por meio de políticas públicas eficazes, construídas com a participação ativa das mulheres que representam a classe trabalhadora.


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