Por Mariane Panek, Psicóloga Comunitária (CRP-08/32713) e militante da Revolução Socialista - LIS.
A luta pela autonomia reprodutiva está intimamente ligada às outras lutas sociais, e liberta em muitos aspectos as diversas identidades que sofrem com o controle do capitalismo sobre esses direitos. A criminalização do aborto e a falta de acesso a cuidados de saúde reprodutiva são ferramentas de controle social que mantêm essas pessoas em posições de vulnerabilidade. Ao defender o direito ao próprio corpo, desafia-se diretamente a estrutura patriarcal que sustenta o capitalismo, abrindo o debate sobre quem lucra com essas estruturas e as ferramentas utilizadas para se manter no poder. A PEC 45, o Marco Temporal, o Arcabouço Fiscal, os projetos de privatização e os ataques diretos à saúde e educação têm o mesmo objetivo: manter o povo brasileiro em trabalhos precários e jornadas exaustivas para extrair o máximo de lucro. O útero das pessoas brasileiras é visto como uma fábrica de mão de obra barata, produzindo um grande exército de reserva que afeta as crianças no fim dessa cadeia, principalmente as negras e indígenas.
Na Revolução Industrial, em 1845, cerca de 43% dos trabalhadores nas fábricas de algodão no Reino Unido eram menores de 18 anos. As crianças trabalhavam longas jornadas, até 14 horas por dia, em condições perigosas e insalubres, expostas a máquinas barulhentas e tarefas arriscadas como a coleta em máquinas de algodão em movimento. No Brasil, as mulheres foram protagonistas na primeira greve geral do país em 1917, onde reivindicaram o fim do trabalho infantil, melhores condições de trabalho, aumento salarial e redução das jornadas. Apesar de não ocuparem posições de liderança nos sindicatos, pressionavam as direções ao reivindicar pautas como licença maternidade, auxílio-creche e igualdade salarial, impactando diretamente o acesso das crianças à educação, cuidado e saúde. A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), promulgada em 1943 após intensa mobilização sindical e feminista, marcou uma mudança significativa na proteção dos direitos das crianças e trabalhadores, melhorando as condições sociais das famílias, promovendo um desenvolvimento mais integral das crianças, valorizando seu tempo livre para educação e lazer.
O enfraquecimento das leis trabalhistas tem impacto direto sobre a infância. Entre 2011 e 2020, foram registrados 24.909 casos de acidentes de trabalho e 466 mortes entre crianças de 5 a 17 anos, conforme dados da Fiocruz. Esses números aumentaram após a reforma trabalhista de 2016, que precarizou ainda mais as relações de trabalho. Apesar das legislações contra o trabalho infantil, crianças negras e vulneráveis continuaram a trabalhar, mas as mudanças nas leis permitiram implementar políticas públicas mais eficazes, ainda que limitadas. De acordo com a FioCruz, crianças negras têm 39% mais chances de morrerem antes de completarem 5 anos. Entre 2016 e 2020, 35 mil crianças e adolescentes de 0 a 19 anos foram mortos de forma violenta no Brasil pela ação truculenta do Estado através da polícia militar, com uma média de 7 mil por ano. Com a justificativa da “guerra as drogas”, a maioria das vítimas tinha entre 15 e 19 anos, sendo os principais afetados, meninos negros. Nos casos de gravidez na adolescência, frequentemente resultado de abusos sexuais, 14% de todos os partos são de mães com até 19 anos, sendo a maioria dessas jovens negras e periféricas no Brasil. Os dados revelam que a cada 24 horas, 320 crianças e adolescentes são vítimas de exploração sexual. No entanto, esse número pode ser ainda maior, dado que apenas 7 em cada 100 casos são denunciados. Nesse caso, 75% das vítimas são meninas e, predominantemente, negras.
As políticas públicas que abrangem todos os aspectos do desenvolvimento social não recebem estrutura no capitalismo. Apesar dos avanços conquistados pelo movimento feminista e pela mobilização social, essas políticas são frequentemente alvo de ataques e, se não forem sustentadas pela mobilização contínua, desaparecem facilmente. Mesmo com leis e políticas públicas existentes, as crianças continuam sendo as mais marginalizadas e vulneráveis na sociedade e em todo o mundo. O genocídio praticado por Israel e apoiado pela mesma bancada que propôs o PL 1904/2024, direciona ataques para mulheres e crianças. Conforme apontado pela ONU, a cada 10 minutos uma criança é morta na região, e há mais vítimas infantis em Gaza do que em quatro anos de guerras pelo mundo. Aproximadamente 17 mil crianças em Gaza estão desacompanhadas ou separadas, representando 1% da população deslocada, que totaliza 1,7 milhão de pessoas.
O movimento Ni Una Menos na Argentina, iniciado em 2015, emergiu como uma resistência contra a violência machista, mobilizando centenas de milhares em protestos contra o feminicídio, a violência de gênero e a opressão. A visibilidade alcançada ampliou o debate público sobre direitos reprodutivos e autonomia sobre os corpos, desafiando tabus, especialmente em relação ao aborto. A pressão persistente dos coletivos feministas da "maré verde", reconhecidos pelos lenços verdes, que iniciou em 2018 e foi determinante para a aprovação do projeto de legalização do aborto pelo parlamento argentino em dezembro de 2020, demonstrando a importância de aproveitar os momentos de mobilização para organizar os trabalhadores e avançar na luta por direitos. Na atual conjuntura mundial e brasileira, onde o governo Lula/Alckmin adota uma política entreguista alinhada aos interesses da burguesia nacional e internacional, é fundamental intensificar a politização das mobilizações e pressionar as direções para desenvolverem um plano de luta contra os constantes desmontes que o país enfrenta, estendendo essas lutas para além de julho.
Não basta que Arthur Lira arquive o PL 1904 ou o retire da pauta, dado que outros projetos também ameaçam diretamente o acesso das crianças à educação, incluindo a educação sexual que previne diversos tipos de abusos. Devemos lutar pelo direito a educação sexual para decidir, aborto legal, seguro e gratuito pelo SUS para não morrer. As privatizações em curso na saúde e na educação também têm um impacto direto sobre as crianças, mostrando que é impossível reformar esse sistema.
Apesar dos desafios presentes, a agenda nacional até julho em defesa do aborto legal oferece uma oportunidade para unificar diversas lutas. É essencial aproveitar este momento para resistir às privatizações, denunciar o genocídio em Israel na Palestina e confrontar políticas como a PEC 45, que buscam manter a marginalização e a desigualdade. Este momento de debates oferece uma oportunidade única para engajar a classe trabalhadora. É necessário que as direções estejam presentes junto à sua base, buscando avanços significativos de consciência. Os sindicatos e outras organizações devem ser verdadeiras ferramentas de luta, utilizando seus recursos para promover avanços neste momento histórico. O movimento não deve se limitar ao "FORA LIRA", mas sim levar para as ruas e diversas formas de mobilização os temas que impulsionam as lutas no Brasil. Devemos pressionar a extrema-direita para recuar de sua necropolítica, enquanto avançamos no processo de luta de classes.
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