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Dia Nacional da Luta Antimanicomial e comunidades terapêuticas: cárcere, tortura, sequestro e homicídio financiado pelos governos

Redação: Henrique Vince, estudante de Psicologia e militante da Revolução Socialista Paraná.

Contribuição: Heloísa Albano e Luana de Souza Lima, estudantes de Psicologia. Júlia Lucena e Beti Clarão (Jake Bright), psicólogues em atuação clínica e serviços de atendimento psicossocial.

Neste 18 de maio, dia Nacional da Luta Antimanicomial, comemoramos o marco da Reforma Psiquiátrica. Porém, não há o que festejar, pois os hospícios ainda existem, enquanto o SUS e a RAPS são destruídos.

No dia 16, a Revolução Socialista esteve presente no ato unificado da Luta Antimanicomial em Curitiba - PR.

Fomos às ruas pelo fim de qualquer tipo de manicômio, enfatizando nosso posicionamento contra o financiamento público das comunidades terapêuticas. Muitos desses locais que se dizem terapêuticos são na verdade cenários de tortura, agressão e assassinatos. Muitas pessoas isolam seus familiares nesses lugares por vários motivos que estão para muito além de “questões em saúde mental”. Assim como nos manicômios do passado, as comunidades terapêuticas são verdadeiros locais higienistas em que pessoas, em sua maioria, dissidentes, são simplesmente privadas de liberdade e alvo de diversos tipos de violência.

As comunidades terapêuticas (CTs)

A ideologia das CTs surge no início do movimento antimanicomial, principalmente no Reino Unido, e apresenta críticas e transformações ao modelo tradicional de clínicas psiquiátricas.

Essa ideologia trouxe pontos relevantes, porém com inúmeras limitações e controvérsias, tal como estruturas hierárquicas, uso de abordagens religiosas que ferem a liberdade espiritual dos sujeitos, etc. Franco Basaglia - psiquiatra pioneiro da Luta Antimanicomial - levanta questões sobre esse modelo e apresenta meios que poderiam as transformar em uma alternativa viável, tal como serviço aberto no território sem internação compulsória, relações horizontais, foco na autonomia, inclusão social, etc. Mas, sabemos que tudo isso está sendo ignorado e usado para o lucro de poucos.

Mais de 80% das CTs, segundo perfil pesquisado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicado (IPEA) em 2018, tem vínculo religioso, explicitamente de matriz cristã. Isso é uma problemática que vai contra a laicidade, que é, mesmo que apenas em teoria, nos garantida por lei, levando em consideração a Constituição Federal de 1988. Contraditoriamente, a RAPS - Rede de Atenção Psicossocial, que é composta pelas UPAs, Unidades de Saúde, CAPS e vários outros pontos de ação do SUS, que tem como princípio a universalidade, a territorialidade e a equidade - segue sucateada e não valorizada pelo governo burguês. A estrutura da RAPS, diferentemente das CTs, preza pela laicidade e pelo respeito aos direitos humanos. 

Afinal, o que é a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS)?

A Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) do SUS, fruto da Luta Antimanicomial e da Reforma Psiquiátrica, organiza e estabelece os fluxos para atendimento de pessoas, desde as com transtornos mais graves até os menos complexos. O acolhimento desses pacientes e de seus familiares é fundamental para identificar as necessidades assistenciais, aliviar sofrimento e planejar intervenções com uso de medicamentos e terapias, conforme cada caso. Pessoas em situações de crise podem ser atendidas em qualquer serviço da RAPS, formado por unidades com finalidades distintas, de forma integral e gratuita, pela rede pública de saúde.

O CAPS, em suas diferentes modalidades no SUS, são pontos de atenção estratégicos da RAPS: serviços abertos e comunitários, constituído por equipe multiprofissional e que atua sob a ótica interdisciplinar e humanizada, realizando atendimento às pessoas com sofrimento ou transtorno mental, incluindo aquelas com necessidades devido ao uso de álcool e outras drogas, seja em situações de crise ou em processos de reabilitação psicossocial.

Porém, hoje, esse serviço, que pode ser utilizado por qualquer pessoa cidadã brasileira, está em risco. Falta de investimento, desmonte de suas características, condições precárias e preconceito hoje fazem parte da realidade de muitos CAPS no Brasil.

Vamos dar nome aos bois. Quem são os ratos que roem o SUS enquanto incentivam as CTs?

A expansão das CTs no Brasil ocorreu a partir de mudanças na RAPS, especialmente durante o governo golpista Michel Temer (2016–2018) e de Jair Bolsonaro (2019–2022), com flexibilização de regras de atuação e financiamento por parte do orçamento do Estado.

As principais ações que impuseram essas medidas:

Portaria nº 3.588/2017 (Governo Temer):

O que mudou?

  • Incluiu as CTs como parte da RAPS, antes focada em serviços públicos e comunitários.

  • Ampliou o financiamento federal para CTs, permitindo repasses mesmo sem alinhamento pleno com os princípios da Reforma Psiquiátrica.


Isso legitimou as CTs como "dispositivos de cuidado" dentro do SUS, apesar de críticas sobre seu modelo asilar e religioso por parte de diversas entidades de saúde.

Documento oficial: Portaria GM/MS nº 3.588/2017

A medida que impôs as CTs dentro da RAPS (Anexo 4 do Anexo V) no programa do governo golpista foi colocada por Ricardo Barros, então Ministro da Saúde na época, e hoje Deputado Federal do Paraná (PP). 

Sua filha Maria Victoria, também do PP, em 2024, concorreu às eleições municipais de Curitiba, como candidata para a prefeitura da cidade. Atualmente é deputada estadual no Paraná e segunda-secretária da Assembleia Legislativa.

Ou seja, não precisa de uma pesquisa muito profunda, é muito fácil localizar os roedores dentro do nosso próprio estado.

Decreto nº 9.761/2019 (Governo Bolsonaro)

O que mudou?

  • Retirou a exigência de que as CTs seguissem diretrizes de redução de danos e autonomia do usuário, princípios básicos da RAPS;

  • Permitiu que CTs recebessem recursos sem comprovar equipe técnica qualificada (como psicólogos e assistentes sociais);

  • Autorizou o uso de recursos públicos para CTs que adotam abordagens espiritualistas (como abstinência compulsória);

  • Reduziu a obrigatoriedade de profissionais de saúde nas equipes.

3.16. Regulamentar, avaliar e acompanhar o tratamento, o acolhimento em comunidade terapêutica, a assistência e o cuidado de pessoas com uso indevido de álcool e outras drogas lícitas e ilícitas e com dependência química, a partir de uma visão holística do ser humano, observadas a intersetorialidade e a transversalidade das ações.

5.2.6. Estimular e apoiar, inclusive financeiramente, o aprimoramento, o desenvolvimento e a estruturação física e funcional das Comunidades Terapêuticas e de outras entidades de tratamento, acolhimento, recuperação, apoio e mútua ajuda, reinserção social, de prevenção e de capacitação continuada.

Documento oficial: Decreto nº 9.761/2019

Essa medida foi uns dos primeiros ataques ao SUS no desgoverno bolsonarista, promovida pelo então Ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta, o carrasco da pandemia, e foi elaborada e assinada junto de seus comparsas: Sérgio Moro, Osmar Terra e Damares Alves, além do próprio presidente.

Ou seja, o decreto aumentou repasses para entidades religiosas e filantrópicas, muitas sem fiscalização rigorosa.

Com isso, podemos acompanhar durante os dois desgovernos o fortalecimento de CTs com viés religioso, em conflito com a laicidade do Estado prevista sob a Constituição Federal. E não se trata sobre estarmos fazendo uma crítica a essas religiões e seus fundamentos, e sim ao desrespeito à liberdade religiosa dos sujeitos e a instrumentalização dessas abordagens para fins de controle social.

Isso se soma aos cortes de orçamento no SUS que foram introduzidos ao Teto de Gastos, medida neoliberal adotada para diminuir os gastos dos serviços públicos e priorizar o pagamento da dívida pública para os grandes bancos e bilionários. Como se não fosse o suficiente as alterações e desmontes na saúde pública, os financiamentos foram concretizados, e, anos depois, as notícias das atrocidades cometidas por inúmeras CTs vieram à tona.

Mais dinheiro e violência: O estado age como cúmplice.

Aqui temos um exemplo de uma das centenas desses financiamentos a CTs criminosas, por parte do estado:

A Comunidade Terapêutica Kairós, hoje com unidades em pelo menos 3 estados (MA, SC e PR), recebeu dezenas de repasses durante o desgoverno bolsonaro, vindos do orçamento público federal.

No  Portal de Transparência, localizamos Notas de Empenho (NE) para a empresa, com observação “ATENDER DESPESAS COM A PRESTACAO DE SERVICOS DE ACOLHIMENTO DE PESSOAS COM TRANSTORNOS DECORRENTES DO USO, ABUSO OU DEPENDENCIA DE SUBSTANCIAS PSICOATIVAS”.

Pode-se observar entre 2019 e 2021 solicitações de pagamento vindos direto do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome.

Essas NE - que aglomeram dezenas de ordens bancárias - variam de 30 a 200 mil reais cada uma. O valor total das NEs somadas passa de 620 mil reais 

A mais espantosa é a NE800049, de 2019, com ordens de pagamento que somam um valor de R$ 211.001,40.


Essas são as informações dos repasses do Governo Federal para esse CNPJ da Kairós em específico, portanto esses valores podem variar, pelo número de centros espalhados pelo país.

Mas, por quê todo esse levantamento dessa CT em específico?

As notícias e denúncias respondem por si só.

Em 2023, Onésio Ribeiro Pereira Júnior, 39 anos, foi assassinado na unidade da CT Kairós de Itacaré, em Embu-Guaçu, Grande São Paulo.

O relato de um dos internos já expõe o modus operandi desses locais:"Espancaram ele de madeira. Amarraram e bateram nele. O meu quarto era em cima do quartinho que ele tava. Nós escutamos tudo...ele gritando: 'pelo amor de Deus para'. Isso aí não pode ficar assim, não pode ficar impune"


Onésio Ribeiro Pereira Júnior. Foto: Arquivo pessoal.
Onésio Ribeiro Pereira Júnior. Foto: Arquivo pessoal.

Seis funcionários dessa CT envolvidos no caso foram presos. O caso foi registrado como homicídio, sequestro, cárcere privado e tortura.

Como se não bastasse o caso de Onésio, um levantamento da GloboNews apurou que em 6 anos (2017-2023), a polícia de SP recebeu mais de 20 denúncias dessa mesma CT. Só em 2023, a cidade de Embu-Gaçu foi alvo de mais de 60 denúncias de violência em Comunidades Terapêuticas.

Mesmo com a instituição recebendo dinheiro do estado, os gastos da família para manter Onésio no manicômio era de mais de R$ 2.000 por mês, conforme apura a entrevista do G1.

A parte 3 da série investigativa do Intercept Brasil “Máquina de Loucos” narra a história de Cláudio Monteiro, profissional da Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo, quando foi internado à força e posteriormente internado em uma das unidades da Kairós, mesmo com a legislação não permitindo internação forçada por parte de CTs.

“O esquema das comunidades terapêuticas é basicamente o mesmo. Não existe nenhuma terapêutica. A terapia é laborterapia – que são trabalhos forçados –, cultos evangélicos que você é obrigado a participar, seja sua religião ou não, e maus-tratos em todos os níveis. Não só violência física, mas violência moral e violência psicológica também.”

“Eu fui transferido para uma clínica em que ao menos dois óbitos aconteceram (Kairós). Quando aconteceu o primeiro óbito, eu estava lá e conheci o rapaz que foi morto. Ele sofreu um espancamento e foi intoxicado com remédios em excesso.”

“Eu sofri violência física quatro vezes. Uma vez eu apanhei com cabo de vassoura e, em outras três, tomei um sossega-leão seguido de espancamento.”

Esses são só trechos do relato de Cláudio, a entrevista completa evidencia mais inúmeras atrocidades da Kairós. Tudo bancado com nosso dinheiro.

Mesmo com a exposição das atrocidades, CTs seguem violentando, e os ratos continuam investindo no absurdo, sob o sangue da RAPS!

Em outubro de 2024, no Paraná, o governador Ratinho Júnior anunciou um repasse de R$10 milhões anuais para as comunidades terapêuticas, muitas delas verdadeiros hospícios disfarçados que, conforme apontado anteriormente, constantemente recebem denúncias de condições insalubres, homicídio, trabalho escravo, marginalização das pessoas e outras inúmeras atrocidades. Esse repasse foi anunciado sem qualquer consulta pública ou participação com entidades e conselhos de saúde do estado.

Enquanto os serviços públicos de atendimento com a saúde mental sofrem com a falta de quadro de funcionários, sobrecarga, lotação e desmonte de políticas especializadas, os ratos seguem investindo em políticas manicomiais que são cientificamente ineficazes e que cometem os maiores absurdos quando falamos sobre direitos humanos.

Por quê há esse retrocesso, mesmo depois da reforma psiquiátrica de 2001?

Há mais de uma década estamos acompanhando o sangramento de diversos serviços públicos da sociedade brasileira, que são os primeiros a serem afetados para que os enormes lucros dos mais ricos continuem estáveis, por consequências que eles mesmos criaram. 

O capitalismo hoje ainda sofre da crise de 2008, a pior dos últimos cem anos, um dos grandes pilares de todo o colapso e barbárie no mundo todo. Essa situação faz com que os governos, submissos aos grandes ricos, apliquem medidas neoliberais de ajuste fiscal e austeridade, sendo uma das maneiras de estrangular os nossos serviços públicos, tal como o SUS, para que os vampiros sigam sugando nosso sangue e sofrimento. As medidas realizadas pelos últimos governos apontadas anteriormente são um reflexo disso.

Os casos da Kairós mostram as caras e consequências do neoliberalismo. Com as políticas da RAPS flexibilizadas e essas CTs privadas e fundamentalistas sendo financiadas com dinheiro do povo, isso deu mais margem para que essas atrocidades sejam cometidas.

As pesquisas e denúncias expostas são apenas a ponta do iceberg. O ano de 2025 começou com dezenas de denúncias em CTs em todo o Brasil. No ano passado, somente o Distrito Federal registrou mais de 70 denúncias de violações.

Famílias que sofrem com o adoecimento e vícios de seus familiares acabam sendo enganadas por essas instituições.

Por não encontrarem alternativa no serviço público, recorrem a esses locais que oferecem uma ilusão de “cura”, e em troca recebem seus entes queridos sob condições desumanas ou em um caixão lacrado.

A farsa progressista e o arcabouço fiscal

Mesmo com a vitória do governo Lula/Alckmin em 2022, considerados “progressistas", não vemos preocupação em lidar com os retrocessos das políticas conquistadas pela Reforma Psiquiátrica. 

O atual governo anda na contramão, cortando orçamento dos serviços públicos essenciais através do Arcabouço Fiscal (novo modelo do teto de gastos de Temer). 

Esse neoliberalismo no estado fere diretamente o orçamento da saúde pública, incluindo a RAPS. Vemos ao vivo e em cores o aumento da demanda nos serviços de atendimento em todo o SUS, somado ao crescimento da população em situação de rua, a necessidade de serviços de assistência social, a violência e etc.

Além disso, o governo não se posiciona de maneira firme contra as atrocidades e inúmeras denúncias feitas contra diversas Comunidades Terapêuticas.

Se o governo ignora a Reforma Psiquiátrica, para onde vai o dinheiro do CAPS?

Os casos da Kairós e seu investimento por parte do estado evidencia o descaso com a Reforma Psiquiátrica.

A instituição segue operando, assim como o financiamento de outras CTs com financiamento por parte do governo:

Pelo que estamos lutando? Para onde seguimos?

É urgente o fim desses hospícios camuflados, a revisão do modelo de comunidade terapêutica no Brasil, sua legislação e atuação. O incentivo às políticas públicas devem ser prioridade, fortalecendo o SUS como sistema verdadeiramente único e universal, sem a participação do setor privado na gestão da saúde do povo.

Precisamos avançar com reformas na Lei de Saúde Mental, garantindo a participação democrática de profissionais, usuários e a sociedade em suas políticas e funcionamento.

Não somente isso, a Luta Antimanicomial envolve várias pautas, como o antirracismo, o antiproibicionismo, a antiLGBTQIAP+fobia, o anticapacitismo, a anti aporofobia, a anti xenofobia e a luta contra a psicofobia.

Pessoas trans, pessoas não brancas - principalmente pretas e indígenas - pessoas com deficiência e pessoas em situação de rua são muitas vezes abandonadas e maltratadas nesses lugares, mesmo sem alguma necessidade de tratamento psicológico específica. Pessoas em sofrimento intenso psíquico sem esses marcadores sociais também não estão seguras nesses lugares, ninguém está.

Nosso programa se estende, queremos a destruição do sistema capitalista e de todos os vampiros que lucram com o sofrimento do povo.

Esse sistema não possui mais condições materiais de se manter, onde seu último respiro vem colaborando com o crescimento do sofrimento das populações de todo o mundo, lucrando com a destruição da natureza, extermínio dos povos originários, da população negra e marginalizada, das pessoas LGBTQIA+ e neurodivergentes.

Nossa sobrevivência será garantida somente com a emancipação de todos os povos, com uma perspectiva revolucionária e socialista que estrangule esse sistema adoecedor, jogando os carrascos sanguessugas, o neoliberalismo e a extrema-direita em seu lugar merecido, a lata de lixo da história.

Pela defesa da RAPS e pelo fim de todas as formas de manicômio!

Faça parte dessa luta e do nosso programa. Entre em contato com a Revolução Socialista e o Núcleo Psico-comunitário Juliano Moreira.

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