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A importância do Conselho Federal de Psicologia manter a independência dos governos e retomar seu legado de luta

Por Mariane Panek - Psicóloga Comunitária (CRP-08/32713) e militante da Revolução Socialista.


Em 2023, o Sistema Conselhos de Psicologia, composto pelo Conselho Federal (CFP) e pelos 24 Conselhos Regionais de Psicologia (CRP), completou seu 50º aniversário. Desde sua instituição em 1971 pela Lei nº 5.766, esses órgãos não apenas delinearam suas funções essenciais, mas também desempenharam um papel crucial em um contexto social e político caracterizado pela repressão durante os anos de golpe militar. 

O dia 20 de dezembro de 1973 tornou-se um marco na história da Psicologia brasileira, pois marcou a realização da primeira eleição do Conselho Federal de Psicologia (CFP), estabelecendo oficialmente sua criação.


Essa atuação se materializa na promoção de estruturas tanto externas quanto internas. O Congresso Nacional de Psicologia (CNP), um evento realizado periodicamente e organizado pelo Sistema Conselhos de Psicologia, reúne profissionais de Psicologia de todo o país para discutir questões relevantes para a categoria e propor diretrizes e estratégias para o avanço da profissão. Deve ser um espaço democrático onde políticas, práticas e diretrizes éticas da Psicologia brasileira são debatidas e delineadas. O último congresso ocorreu de 2 a 5 de junho de 2022, com deliberações válidas até 2025, considerando que o congresso ocorre a cada três anos. Sua missão é garantir transparência, democracia e eficiência na condução desses assuntos, servindo como um lembrete constante da necessidade de que tais valores sejam firmemente mantidos e promovidos dentro do Sistema Conselhos de Psicologia.


Com base na premissa de uma prática psicológica fundamentada na participação democrática de todos os profissionais, o Sistema Conselhos de Psicologia testemunhou o surgimento de uma categoria profissional crítica em relação ao regime ditatorial. Sua criação marca um marco importante na regulamentação da profissão, conquistada após uma mobilização árdua da categoria em meio aos cenários de repressão. Durante os anos 1964-1985, muitos psicólogos começaram a questionar o modelo clínico tradicional e a definição de Psicologia Social, influenciados pelas correntes norte-americanas e europeias, percebidos como perpetuadores de uma narrativa violenta, restrita e dissociada das complexas realidades sociais do país. A emergência da Psicologia Comunitária foi uma resposta a essas limitações, visando abordar questões sociais mais abrangentes e atuar diretamente nas comunidades. Seu desenvolvimento ocorreu em um contexto de censura, onde os psicólogos buscavam formas de lutar pela mudança social e resistir às práticas autoritárias da época.


Durante esse período, por meio da Psicologia Comunitária, com uma atuação profundamente influenciada pelo método de Paulo Freire e outras abordagens similares que surgiram naquela época, a categoria psicológica se uniu aos movimentos sociais em prol da democracia e dos direitos humanos. Nesse contexto, os psicólogos forneceram apoio psicológico e trabalharam para fortalecer as comunidades e seus membros, contribuindo para o desenvolvimento de uma consciência crítica e participativa em face das adversidades enfrentadas durante o regime ditatorial. Essa abordagem destacava a importância da participação comunitária da categoria, independente de suas outras áreas de atuação, da conscientização e da emancipação dos indivíduos, em oposição à opressão e ao controle social impostos. A profissão passou por uma verdadeira revolução, com psicólogos militantes como Martin-Baró, de nacionalidade espanhola e salvadorenha, Silvia Lane, brasileira, Maritza Montero, venezuelana, e outros que assumiram papéis de destaque nesse processo.


O Movimento da Reforma Psiquiátrica, que teve início no final da década de 70 e é reconhecido como "luta antimanicomial", representa mais uma etapa na luta da categoria após o afastamento da psicologia das abordagens limitadas que predominavam até então.

Através dessa articulação da profissão com os movimentos sociais, e de forma internacional, a Psicologia se engaja na batalha antimanicomial, unindo-se a outros profissionais da saúde e familiares de pessoas institucionalizadas. Essa mobilização é uma resposta crucial ao contexto em que os manicômios eram símbolos de opressão, representando verdadeiras câmaras de tortura. Esse cenário não apenas reflete as atrocidades do período ditatorial em toda a América Latina, mas também ilustra uma visão ultrapassada sobre os transtornos mentais, estigmatizando populações marginalizadas, LGBTQIA+, negras e outras. Após mais de 30 anos de luta por uma mudança radical no tratamento dos transtornos mentais no Brasil, foi promulgada a Lei 10.216, conhecida como Lei da Reforma Psiquiátrica, em 6 de abril de 2001. Esta legislação propôs a criação da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) como uma alternativa humanizada ao modelo anterior. No entanto, embora a RAPS represente um avanço significativo, sua implementação ainda não alcançou todas as suas próprias proposições, enfrentando obstáculos, como a redução de investimentos e retrocessos políticos.


Foi durante essas intensas batalhas travadas pela categoria que surgiu a criação do Sistema Conselhos. Em meio a um cenário hostil, tornou-se essencial a existência de instituições que fiscalizassem e regulassem o exercício de uma profissão que estava redefinindo sua narrativa. Até então, essa narrativa estava marcada pela influência dos colonizadores que causaram tanto sofrimento em nosso país, utilizando a psicologia como ferramenta para subjugar as mentes, e pelo imperialismo que impôs ditaduras militares em muitos países periféricos do capitalismo. A categoria também esteve presente nas lutas e mobilizações que levaram a criação do Sistema Único de Saúde (SUS).


Portanto, foi fundamental e continua sendo, a existência de um Sistema de Conselhos democrático, que busca orientar, fiscalizar e regulamentar, consolidando uma nova narrativa profissional. Isso é alcançado através da criação de Referências Técnicas essenciais para embasar as práticas. Bem como de Comissões temáticas, permanentes ou transitórias, construídas por profissionais atuantes que se aproximam da categoria como um todo e sustentam uma profissão comprometida com a transformação social. Essas comissões também promovem a reflexão sobre os direitos humanos inerentes à formação, à prática profissional e à pesquisa em Psicologia. Além disso, intervêm em situações que violam os direitos humanos, causando sofrimento mental, e participam ativamente de iniciativas que visam preservar os direitos humanos na sociedade brasileira. Todas essas ações são cruciais para manter viva a proposta de uma psicologia crítica e contextualizada com a realidade da América Latina.


Ainda arrastamos resquícios de uma Psicologia que negligenciava sua responsabilidade social por parte de muitos profissionais, o que pode resultar em cenários de violência, especialmente contra populações marginalizadas. Quando os profissionais não estão sensibilizados com as realidades sociais do país, suas ações podem ser permeadas por preconceitos, violência, homofobia e até mesmo comportamentos criminosos. Por isso, continuar disputando essa consciência profissional e fortalecendo a narrativa de uma profissão combativa, também se faz tão importante nessa disputa.


É de suma importância um conselho profissional com o compromisso firme para evitar tais situações, função que o Conselho Federal de Psicologia tem executado com eficiência todos esses anos, e muitos Conselhos Regionais também. Sem uma regulação adequada, observamos práticas que carecem de responsabilidade social e ética, perpetuando violências. Isso pode ser evidenciado em atividades como Coaching e Constelações Familiares. A presença de um conselho engajado é crucial para garantir a ética e a integridade da profissão, protegendo aqueles que procuram ajuda e reforçando a responsabilidade social dos psicólogos em todas as esferas de atuação.


Um sistema de conselhos independentes do governo assegura que as políticas e regulamentações relacionadas à prática profissional sejam formuladas e aplicadas de maneira imparcial, sem influências políticas externas que possam comprometer a integridade da profissão. Isso é fundamental para garantir a qualidade dos serviços prestados, a ética profissional e a proteção dos direitos dos profissionais e dos usuários dos serviços de Psicologia. Além disso, permite que ele atue como um órgão de defesa dos interesses da categoria em relação a questões políticas, sociais e econômicas que possam impactar a prática profissional. Manter essa postura independente é crucial para proteger os princípios essenciais da profissão, promover o respeito aos direitos humanos e assegurar a eficaz implementação das políticas públicas.


Lamentavelmente, a expansão dos serviços de saúde comunitários praticamente estagnou desde 2011. Além disso, a ausência de dados a partir de 2015 representa uma significativa perda de transparência por parte do Ministério da Saúde. Durante esse período, sob a presidência de Dilma Rousseff, os avanços conquistados nos governos anteriores do PT não foram sustentados, revelando as limitações da governabilidade burguesa. Esses avanços, são restritos e obtidos à custa de concessões em outros direitos, não necessariamente em linha com as necessidades da população, mas sim com os interesses da elite dominante do país, que faz o necessário para preservar seu controle social. Não foi por acaso que, quando Dilma Rousseff começou a buscar um distanciamento dessas concessões, sua destituição da presidência ocorreu de forma rápida e fácil, evidenciando quem de fato detém o poder no país.


Os retrocessos se intensificaram após o golpe institucional sofrido pela presidente e durante a subsequente gestão de Michel Temer. Essa fase foi marcada por uma série de manobras que impactaram diretamente a saúde mental e a qualidade de vida da população brasileira. Entre essas medidas, destacam-se a aprovação da reforma trabalhista e a extinção de ministérios como o da Cultura, Comunicações, Mulheres, Igualdade Racial e Direitos Humanos.


Isso evidencia como supostos avanços dentro da estrutura capitalista, são rapidamente perdidos em um cenário de instabilidade. Muitos desses avanços, como os progressos na área da saúde mental, foram obtidos através de mobilizações populares e precisam ser constantemente sustentados. Até mesmo os poucos direitos conquistados dentro dessa governabilidade são resultado da pressão das massas mobilizadas, que se manifestam nas ruas em um movimento de organização, deixando claro o temor da burguesia em perder seu controle social diante da expressiva presença popular.


A eleição de Jair Bolsonaro em 2018 representou uma consequência direta dessa crise política e social, que se caracterizou pela ausência de uma direção clara no espectro político oposto. Esse vácuo de poder deixou um terreno fértil para o avanço da extrema-direita, que encontrou apoio entre setores da burguesia e do capital, mas também sendo um movimento de massas descontentes com a política de concessões que vinha se apresentando através das constantes crises dos últimos governos do PT.

A desmobilização da esquerda nas lutas cotidianas contribuiu para fortalecer o surgimento dessa nova direção política, que se alimentou das frustrações e descontentamentos da população. E que hoje está dentro do Congresso e pautando cada decisão sobre os nossos direitos. Além de estar avançando na consciência da população brasileira.


Considerando o contexto político atual do Congresso brasileiro e todas as manobras políticas realizadas pelo governo do PT, é evidente que a desmobilização para evitar um possível descontentamento com o governo é uma estratégia insustentável. A verdadeira garantia da própria governabilidade está na manutenção da independência e na mobilização das categorias em prol da classe. No entanto, vemos que questões fundamentais continuam estagnadas ou retrocedendo. O avanço das Comunidades Terapêuticas, o agravamento da violência policial e a persistência da discussão sobre o Marco Temporal são exemplos concretos de pautas essenciais que permanecem estagnadas. Cada dia sem a demarcação das terras indígenas representa não apenas uma negação de direitos, mas também perdas humanas, como o aumento dos casos de suicídio entre jovens indígenas e assassinatos dessa população, que permanece resistindo e defendendo suas cosmovisões e territórios. Esses retrocessos, somados ao desmonte do orçamento de saúde mental e à falta de políticas públicas para esses povos, têm graves consequências que se acumulam a cada dia que passa sem avanços.


É crucial que um governo que se autoproclama progressista e que subiu a rampa com representantes das maiores marginalizações brasileiras, esteja ativamente engajado no combate a essas injustiças. Deveria estar em constante contato com suas bases populares, mobilizando-as para dar suporte a essas demandas urgentes, que confrontam os verdadeiros inimigos da nação. No entanto, essa postura proativa não tem sido adotada pelo presidente Lula, seus ministérios e as organizações sob sua influência, como a central sindical CUT, ou as frentes de luta onde possuem maiores influências. O governo Lula/Alckmin encaminhou para o Congresso o projeto orçamentário de 2024, revelando que os ministérios voltados para a diversidade e o combate à discriminação enfrentarão cortes significativos.


Entre os mais afetados, destaca-se a pasta da Igualdade Racial, liderada por Anielle Franco, com um orçamento de apenas 163 milhões de reais. O Ministério das Mulheres, chefiado por Cida Gonçalves, com 208 milhões de reais. Além disso, observa-se uma redução nos recursos destinados aos Ministérios dos Direitos Humanos e Cidadania, liderado por Silvio Almeida, com um orçamento de 412 milhões de reais, e o Ministério dos Povos Indígenas, sob responsabilidade de Sonia Guajajara, que terá um orçamento de 856 milhões de reais. Não podemos permitir que vidas continuem em risco e que direitos fundamentais sejam sistematicamente violados enquanto se espera por uma ação que não chega. É também responsabilidade das categorias combativas realizar essa oposição, liderar e cobrar essa mobilização.


Sob essa perspectiva, a organização política da categoria também desempenha um papel crucial, não apenas para fortalecer a psicologia, mas também todas as outras classes influenciadas por seu trabalho. Seja por meio de sindicatos, movimentos, correntes ou partidos militantes, a união da classe é essencial para lutar pelos avanços necessários para a profissão. Atualmente, a psicologia enfrenta significativos desafios, incluindo a falta de um piso salarial e uma carga horária estabelecida, além de ser uma das profissões afetadas pela crescente precarização do trabalho em todas as suas áreas. Frequentemente, os profissionais enfrentam condições de trabalho marcadas pela uberização e individualização, além de uma disputa de espaço por práticas irresponsáveis e não regulamentadas. Nesse cenário, os profissionais frequentemente se veem em uma situação vulnerável, devido à dependência da indústria de convênios, que não remunera nem mesmo um terço da tabela de honorários da psicologia. Além disso, a atuação desses profissionais tende a ser clínica ou de dupla jornada, devido à falta de políticas públicas em outras áreas, como a escolar ou comunitária. Essa predominância na área clínica não é necessariamente uma escolha dos profissionais, mas sim uma necessidade decorrente das circunstâncias.


O Conselho Federal, cuja existência foi conquistada por meio de lutas históricas, também desempenha um papel crucial nesse contexto. Além de promover e representar a categoria, incentivando sua participação e ocupação de espaços de controle social, também tem a importante missão de revigorar o espírito de resistência e luta entre as massas, da mesma forma que foi fundamental em sua própria criação. É essencial ressaltar que a postura do Conselho Federal influencia diretamente os conselhos regionais, destacando a necessidade de estar ativamente engajado na formulação de estratégias para combater as injustiças sistêmicas. Embora já existam esforços nesse sentido dentro da institucionalidade, é crucial que tais iniciativas alcancem as bases e as massas que enfrentam esses desafios, e por isso a necessidade de mobilização geral.


O Conselho Federal de Psicologia (CFP) deve ser um verdadeiro guia ético e um motor de mobilização para a categoria e de quem é afetado por ela. Em uma profissão com uma carga tão significativa de responsabilidade social, lidando com diversas vulnerabilidades e subjetividades, bem como com estruturas fundamentais para a sociedade, é essencial que o Sistema Conselhos permaneça autônomo em relação aos governos. Além disso, é crucial que o CFP reafirme e revitalize sempre os legados de luta, conquistados pela categoria ao longo do tempo, como os avanços da Reforma Psiquiátrica, utilizando-os como instrumentos para fortalecer sua resistência contra quaisquer tentativas de desmantelamento institucional, mesmo que esses venham de um governo supostamente progressista. Essa dinâmica fortalece as políticas públicas relacionadas à profissão, empodera a categoria e amplia as oportunidades para a sociedade. Ao se engajar nesses processos, a profissão de psicologia se aproxima cada vez mais das necessidades reais das pessoas, abandonando uma visão elitista e distante em favor de uma abordagem socialmente responsável e próxima daqueles que mais necessitam.


Somente através de uma mobilização combativa e uma ação política radical podemos confrontar os retrocessos, sustentando um próximo Congresso (CNP) que aborde essas demandas de maneira independente, autêntica e construída a partir da base. Tendo capacidade de se sustentar também perante os avanços da extrema direita e a disputa de consciência no mundo.







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